O Estado de S. Paulo
Cenário de terra arrasada nos permite compreender a ascensão vertiginosa do golpismo dos últimos anos
A construção do Estado moderno, com a
inerente separação dos Três Poderes, foi uma forma de evolução do contrato
social, tendo o bem-estar da sociedade como foco das atenções, depois de
séculos de absolutismo dos reis.
A tomada da prisão da Bastilha, em 1789,
pelos franceses é símbolo dessa transição e foi um dos momentos mais sublimes e
inspiradores da história da civilização. Significou a subida de degraus na
escada evolutiva da luta contra o arbítrio. Representou divisor de águas
singular para o humanismo, para a ruptura daquele injusto e despótico esquema
de poder até então prevalente.
Entretanto, passados mais de dois séculos da Independência e quase 150 anos da República no Brasil, o compadrio político, o patrimonialismo, a corrupção, a lenta e difícil assimilação e sedimentação dos valores republicanos e democráticos nos têm condenado a viver em estado de alerta permanente, em que milhões sobrevivem marginalizados (40% nem sequer têm acesso a saneamento básico), diante da estratosférica desigualdade social.
Nesse contexto recebemos a informação do
assassinato a 29 tiros de fuzil de Vinicius Gritzbach, à luz do dia em plena
área de desembarque do Aeroporto de Guarulhos, parecendo cena de filme, pois é
óbvio que o mando e a execução do crime se relacionam ao fato de a vítima ter
tido ligações com o crime organizado e estar delatando policiais acusados de
corrupção.
Em sua bagagem havia R$ 1 milhão em joias, o
carro de sua escolta sintomaticamente “quebrou” a caminho do aeroporto e,
apesar de ter sido reiteradamente ofertado, ele recusou ser inserido no
programa estatal de proteção de vítimas e testemunhas, o que poderia ser
compreendido pelas drásticas restrições, mas também, em tese, ter outra
explicação: a inclusão talvez o impedisse de continuar violando a lei.
O crime organizado quis ostentar para o mundo
sua força, e essa demonstração equivale a um desafio para o Estado esclarecer
prontamente o crime e levar à Justiça todos os responsáveis, o que ainda não
ocorreu.
A leitura disso pela sociedade brasileira e
pelo mundo é de extrema fragilidade das nossas instituições de Estado: polícia,
Ministério Público e Poder Judiciário, cujo enfraquecimento vem sendo buscado
deliberadamente em reiteradas manobras legislativas, apontadas em recente
relatório da OCDE, algo preocupante sob o prisma social e do ponto de vista da
(in)eficiência crônica no combate à corrupção.
É digno de nota que na Câmara em 2008 houve
22 urgências de votação (deliberações sem debates, sem análise das comissões,
sem audiências públicas). A prosseguir no ritmo que estamos, ultrapassaremos
400 urgências em 2024, o que revela também a gravíssima fragilização da
democracia. A próxima vítima pode ser a Lei da Ficha Limpa, cujo PLP 192/23
avançou na Câmara e no Senado sem debates, mesmo tendo se originado de um
projeto de iniciativa popular com assinaturas colhidas ao longo de 14 anos.
Por sua extrema lucidez, Daron Acemoglu acaba
de receber o Prêmio Nobel de Economia pelo conjunto de sua obra que dá ênfase à
importância do fortalecimento das instituições sociais para o progresso e
crescimento das nações.
Ao invés de seguir esse caminho, diante da
constatação do pornográfico índice de reeleição de 93% dos prefeitos
recebedores de emendas Pix nos cem maiores municípios beneficiários, o que
evidencia que o fator desequilibra a competição pelo voto, o Congresso acaba de
aprovar a Lei Complementar 210/24, sancionada pelo presidente, que avaliza o
orçamento secreto, na contramão do que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF)
nas ações propostas pela Abraji, PGR e PSOL.
No Congresso tem sido comum a parceria entre
os mais diversos segmentos políticos, entre Legislativo e Executivo, para
inviabilizar o controle da corrupção, como ocorreu na anistia aos partidos e no
esmagamento da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/21, com diversos
parlamentares processados votando a favor da aprovação do projeto para se
autobeneficiar.
Esse cenário de terra arrasada nos permite
compreender a ascensão vertiginosa do golpismo dos últimos anos: dezenas de
milhares de pessoas indo às ruas reiteradamente com apoio do expresidente para
pedir o fechamento do Congresso e do STF, chamando isso de “manifestação”.
Usam o método do caos informativo, em que a
distinção entre verdadeiro e falso é nivelada na infosfera onde vivemos
aprisionados, segundo Byung-Chul Han, o filósofo das não coisas.
Disso se desdobrou o ataque simultâneo de
milhares de pessoas às sedes dos Três Poderes, com espancamento de dezenas de
jornalistas após o 8 de Janeiro, o que por um fio não resultou na ruptura do
Estado de Direito.
Semanas antes estava tudo organizado para
assassinarem o presidente eleito, o vice e um ministro do STF. E mais
recentemente tivemos a explosão do homem-bomba com ares terroristas diante do
STF – um lobo da alcateia golpista, agindo em sintonia com ela.
Caberá ao procurador-geral da República
examinar o arsenal de provas colhidas pela Polícia Federal, que levaram ao
indiciamento do ex-presidente e outras 36 pessoas por tentar abolir
violentamente o Estado de Direito e outros gravíssimos crimes. A responsabilidade
é emanada de uma importante sequência de atos e será necessário observar toda a
floresta, e não apenas uma das árvores isoladamente.
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