quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A quebra do sigilo fiscal e o Estado totalitário :: Ricardo Caldas

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

"(...) Confessavam assim que havia sido consumada a transformação do Estado de instrumento da lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado, e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de [Adolf] Hitler de que "o direito é aquilo que é bom para o povo alemão".

(...) Mas, como a sua criação [do Estado-nação] coincidia com a de governos constitucionais, os Estados-nações sempre haviam representado o domínio da lei, e nele se baseavam, em contraste com o domínio da burocracia administrativa e do despotismo -ambos arbitrários.

De modo que, ao se romper o precário equilíbrio entre a nação e o Estado, entre o interesse nacional e as instituições legais, ocorreu com espantosa rapidez a desintegração dessa forma de governo e de organização espontânea de povos."
(Trechos do livro "As Origens do Totalitarismo", página 308, de Hannah Arendt).

Na passagem acima, Hannah Arendt nos mostra como ocorre o processo de transformação do Estado de Direito em despotismo.

Ainda que na Europa a ascensão do totalitarismo tenha se dado em um contexto de perseguição às minorias nacionais, a forma como o Estado de Direito entra em declínio é sempre a mesma: as normas perdem o valor, os dirigentes do Estado se sentem à vontade para quebrá-las e a burocracia administrativa reina desimpedida, ao lado do despotismo.

Assim, o que caracterizava o totalitarismo para Arendt era não apenas a banalização do terror mas também a forma como o regime totalitário interfere e invade a vida individual de cada cidadão, que caberia ao Estado justamente proteger. Com efeito, entre as características do Estado de Direito estão, "inter alia", o fato de todos, inclusive o próprio Estado, estarem submetidos às mesmas normas.

A essência do Estado de Direito é o respeito às normas e o respeito aos direitos fundamentais. Estes são direitos subjetivos que existem por parte do indivíduo perante o Estado, mas que nem por isso deixam de ter um claro conteúdo (direto) na relação Estado-cidadão.

No caso do Brasil, sigilo fiscal está associado a direito à privacidade, previsto na Constituição Federal de 1988 (título 2º, artigo 5º, inciso 10). A quebra de sigilo fiscal representa, portanto, uma quebra de um princípio constitucional. Dito de outra forma, o Estado, ao quebrar o sigilo fiscal de um de seus cidadãos, abandona sua característica de garantidor de direitos e se torna um Estado usurpador.

Esse fato -a quebra do sigilo fiscal- é um aviso de que o Estado democrático de Direito está em crise e de que um Estado totalitário se aproxima.


Ricardo Caldas, professor de ciência política, é diretor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB (Universidade de Brasília). Publicado em 8/9/2010

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