Assustado com as dimensões da onda de instabilidade que poderá advir da crise europeia, o governo agora promete mudar de vida. Quer que o País esqueça as práticas dos últimos seis anos e acredite no novo e inabalável compromisso de Brasília com uma política fiscal séria e austera sem apelo a mágicas e truques de qualquer tipo.
É natural que tais promessas tenham sido recebidas com ceticismo. Afinal, trata-se da mesma equipe econômica que jamais conseguiu mostrar convicção sobre a necessidade de manter uma política fiscal consequente. O que, diga-se de passagem, nunca chegou a surpreender quem se lembrava de que, um ano e meio antes de tomar posse como ministro do Planejamento, Guido Mantega ainda se sentia completamente à vontade para alegar na mídia que a meta de superávit primário de 3% do PIB era "exagerada e suicida". E para acusar o governo de ter posto em primeiro plano a garantia dos credores.
Durante os três primeiros anos do governo Lula, Mantega jamais escondeu sua insatisfação com a política que vinha sendo conduzida por Antonio Palocci no Ministério da Fazenda. E, seja como ministro do Planejamento ou como presidente do BNDES, sempre esteve claramente alinhado às forças que, dentro do governo, se batiam pelo afrouxamento da política fiscal. E, como era de esperar, foi exatamente isso que passou a patrocinar quando, em 2006, se viu à frente do Ministério da Fazenda.
A crise mundial de 2008, já no segundo mandato do presidente Lula, foi o pretexto que faltava para que o governo rompesse de vez com os cânones da política macroeconômica que havia sido mantida por Palocci. Especialmente grave foi a montagem, à luz do dia, de gigantesco orçamento fiscal paralelo no BNDES, fartamente alimentado por transferências diretas do Tesouro, feitas por fora do orçamento e sem contabilização nas estatísticas de resultado primário e de dívida líquida. Mais de R$ 300 bilhões de recursos do Tesouro, advindos da emissão de dívida pública, já foram transferidos ao BNDES desde 2008, para serem alocados ao livre arbítrio do governo.
Ao final de 2009, com a rápida recuperação da economia brasileira, já não havia mais racionalização possível para uma política fiscal mais frouxa. Mas isso não impediu que o governo fizesse de 2010 um ano de memorável farra fiscal. E, quando os indicadores fiscais pioraram, a equipe econômica fez o que podia e, especialmente, o que não podia, para "manter as aparências". Para evitar que os excessos ficassem evidenciados nas contas públicas, em toda sua extensão, não relutou em recorrer a truques contábeis grosseiros, ao arrepio do penoso esforço de construção de credibilidade e transparência no registro das contas públicas, que já havia atravessado vários mandatos presidenciais.
A desconstrução institucional não parou por aí. Basta lembrar a lei de superindexação do salário mínimo, as novas permissões de ampliação do endividamento dos governos subnacionais e a restauração, com pompa e circunstância, do amplo acesso dos governos estaduais ao crédito dos bancos públicos federais.
Enquanto isso, continua intocado o regime fiscal que vem requerendo aumento sem fim da carga tributária para que as contas públicas sejam mantidas sob controle. As reformas que poderiam contribuir, em prazo hábil, para alteração desse regime foram sistematicamente deixadas de lado nos últimos anos. É tendo tudo isso em perspectiva que se deve agora avaliar como encarar o recém-estreado compromisso de Mantega e sua equipe com a manutenção da solidez fiscal. E a verdade é que, tendo em conta uma folha tão extensa de desserviços à agenda de consolidação fiscal no País, é muito difícil levar a sério o novo discurso da equipe econômica. A súbita conversão da equipe da Fazenda apenas denota a extensão de sua preocupação com as dimensões da onda de instabilidade que poderá advir da crise europeia. Como bem notou Samuel Johnson há mais de 200 anos, não há nada que concentre mais a mente do que a visão do cadafalso.
Rogério L. F. Werneck, economista, professor da PUC-Rio
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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