Distinguir as motivações dos manifestantes e diminuir a possibilidade de as ações violentas se legitimarem é fundamental para a paz
Em 1840, Lorenz von Stein empregou pela primeira vez o conceito de movimento social, perplexo com as práticas sindicais do movimento operário francês. Revelava um profundo estranhamento em relação às mudanças sociais aceleradas carregadas pela industrialização e urbanização europeias.
Cento e setenta anos depois, as manifestações de junho geram o mesmo estranhamento envolvendo cientistas sociais brasileiros que deveriam, ao menos, ter olhar treinado para compreender as filigranas do social. As manifestações, desde o início, tiveram atos de violência como elemento constitutivo. Em junho, contudo, eram refutados pela maioria dos manifestantes. Mas a partir de julho, já se percebia uma gradativa tolerância. O que mudou? A total insensibilidade de autoridades públicas em procurar negociar.
De maneira torta, as ruas de junho lançaram pontes para o campo institucional. Ao criticarem acidamente governantes, abandonaram o cinismo e pragmatismo políticos que vinham tomando parte do eleitorado. Havia uma ponte levantada que autoridades públicas não souberam utilizar. Ao contrário, procuraram responder como reação instintiva, muitas vezes revertendo posições assumidas dias antes para, logo depois, voltarem atrás.
Uma geração de políticos que desconhece que ao gestor público cabe negociar e liderar. Cabe compreender que seu planejamento nunca pode ser normativo, mas flexível ao desejo social. Interditado o diálogo, o espaço para a revolta se abriu. Com o conflito, práticas violentas se reproduziram nos protestos.
"Black bloc" não é um agrupamento específico, mas uma tática de ação direta, de inspiração anarquista, empregada por quem desejar, ao estilo "faça você mesmo". Nas manifestações, as práticas "black blocs" foram sendo apropriadas por diferentes agrupamentos: de anarquistas a jovens da periferia revoltados com a violência policial (absolutamente desorganizados), passando por grupos com vínculos com o crime organizado.
Para quem procura compreender o que se passa nas ruas deste segundo semestre, considerar todos como um bloco com as mesmas motivações é retornar à política do café com leite da era Washington Luiz, quando a questão social ainda era tratada como caso de polícia.
Se a própria Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro avalia apenas duas UPPs como positivas, segundo a Folha noticiou, afirmar que os "black blocs" contribuíram para o fim da política de pacificação é, no mínimo, estranho.
O combate à violência se faz com inteligência. Distinguir motivações e procurar diminuir a possibilidade de as ações violentas se legitimarem é fundamental para consolidar a cultura da paz. Ao contrário, criminalizar indistintamente como política de inibição do protesto social, não apresentar saída para o diálogo, reduzir o papel do governante à condição de mero gestor da máquina pública é não aprender com as lições que vieram da Argentina (com as Assembleias Populares de 2001), da Islândia (com a Revolução das Panelas, em 2008) e os confrontos que envolveram tantas outras mobilizações nacionais neste século. É ignorar todos os estudos sobre movimentos sociais que se seguiram à perplexidade de Lorenz von Stein.
Rudá Ricci, 51, sociólogo, é diretor do Instituto Cultiva e membro do Fórum Brasil do Orçamento
Fonte: Folha de S. Paulo
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