FHC: "O povo não tem o grau de irritação [com o governo federal] que tem o mercado porque não focou ainda na eleição"
"Esquecer, não. Mas a revanche também não ajuda. As Forças Armadas poderiam ajudar a botar uma pedra final nisso"
Cristian Klein – Valor Econômico
SÃO PAULO - Nem esquecimento, nem revanche. Mas, para o acerto de contas do país com o passado marcado pela brutalidade das torturas e demais violações aos direitos humanos, as Forças Armadas brasileiras deveriam reconhecer que erraram.
É o que defende o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao analisar os 50 anos, completos hoje, do golpe militar de 1964.
Para o sociólogo, o caminho do Brasil não é o de tantos outros países (Argentina, Chile, Peru, Uruguai) que, uma vez terminada a ditadura, puseram na cadeia líderes e agentes da repressão. A trilha aqui seria a da reconciliação, semelhante à da África do Sul pós-apartheid. Mas, para isso, ainda falta um passo: o reconhecimento do erro pelos militares.
"Eu não entendo por que é que as Forças Armadas ainda não dizem: 'Olha aqui. Nós fizemos isso e foi errado'. Porque se eles disserem isso, acabou", argumentou FHC, em entrevista ao Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor.
O ex-presidente sugere o "mea culpa" como alternativa às demandas, ainda existentes, de derrubada da Lei da Anistia, que impede a punição dos torturadores. Em 2010, por 7 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) rechaçou a revisão da lei.
Na conversa, FHC critica o governo federal, entre outras razões, pelo aparelhamento da Petrobras. O tucano vê indícios de um propinoduto na compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, no caso que pode levar a estatal a ser alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso.
Sobre as eleições deste ano, Fernando Henrique descarta a possibilidade de vir a ser o vice na chapa presidencial do PSDB, encabeçada pelo senador mineiro Aécio Neves, mas sinaliza sua preferência por um nome de São Paulo. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual é a lição que o golpe deixa 50 anos depois?
Fernando Henrique Cardoso: Ninguém pensa mais que para obter igualdade vamos suprimir a liberdade. De lá para cá, o Brasil melhorou muito. As instituições estão mais enraizadas. E ficou demonstrado que a solução não é o golpe. Ninguém hoje prega golpe. As Forças Armadas que eram muito ativas como um partido político deixaram de ser. Elas são institucionais, órgãos do Estado. Isso tudo foi um aprendizado. Levou muito tempo, mas aprendemos.
Valor: Em vários países que tiveram ditaduras, revelações feitas em comissões da verdade comoveram a população e levaram à punição de torturadores. Qual deve ser o legado para as próximas gerações: esquecer ou mexer no passado?
FHC: Esquecer, não. Mas a revanche também não ajuda. Não adianta nada. A Comissão da Verdade que foi criada na África do Sul, inicialmente, era para reconciliar. Não era para punir. Aqui, hoje, não tem como punir, porque tem a Lei da Anistia.
Valor: Mas ela poderia ser derrubada pelo Supremo.
FHC: Pode, mas não derrubou. E faz 50 anos já. As famílias têm o direito de saber o que foi feito com as vítimas. É absolutamente necessário.
Valor: Mas e a punição aos torturadores?
FHC: Eles estão confessando, publicamente. Aliás, é uma coisa horripilante o cinismo com que eles falam. Mas acho que a esta altura não há quem esteja pedindo revanche. E também tem que entender que as Forças Armadas mudaram. Eu não entendo porque é que as Forças Armadas ainda não dizem: "Olha aqui. Nós fizemos isso e foi errado". Porque se eles disserem isso, acabou. Ninguém é contra as Forças Armadas no Brasil. Quem se rebela ou acha que elas são de direita? Ninguém. Não tem isso. Acho que elas [Forças Armadas] também poderiam ajudar a, digamos, botar uma pedra final nisso.
Valor: As Forças Armadas têm uma postura muito defensiva?
FHC: Eu, como presidente da República, pedi desculpas em nome do Estado brasileiro. E avisei que ia fazer isso e criei aquela primeira comissão de reparação. O Estado teve responsabilidade. E não vejo agora porque não as próprias Forças Armadas dizerem: "Erramos". As dependências eram administrativas das Forças Armadas. Não podia ter deixado. Foi mais que um erro. Fez uma coisa ativa. Mas foi uma minoria. Por que essa maioria de hoje não diz isso: "Não temos nada [a ver] com isso"? E todo mundo sabe que eles não têm.
Valor: A presidente Dilma Rousseff errou no caso da compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras?
FHC: Isso eu acho que vem de longe. Foi antes da Dilma. A Petrobras foi perdendo sua capacidade de tomar decisões de uma maneira mais consequente primeiro porque houve uma penetração dos partidos grandes, nomeações políticas. E, em segundo lugar, porque, depois da mudança da Lei do Petróleo, em 2010, houve uma sobrecarga financeira muito grande sobre a Petrobras. Porque ela é obrigada a participar com 30% de todos os novos investimentos do pré-sal e isso exige muitos recursos. E terceiro, aí, sim, Dilma tem a sua parte direta, porque o controle do preço da gasolina levou a Petrobras a ficar sem caixa. Somando tudo isso, a Petrobras foi ficando sufocada. Não tem caixa, tem que fazer gastos grandes e foi se endividando.
Valor: Sobre o aparelhamento partidário da Petrobras, o PSDB, em seu governo, não ocupou igualmente a estatal como o PT agora?
FHC: Quando fizemos a Lei do Petróleo [em 1997] e começamos a mexer mais na Petrobras, o conselho de administração era composto por diretores da Petrobras. Primeiro, comecei a nomear gente de peso, de fora da Petrobras - o próprio [empresário Jorge] Gerdau, que continua lá até hoje. Segundo, eu herdei um presidente [Joel Rennó] do [governo] Itamar [Franco], com o qual fizemos as transformações da Lei do Petróleo, e em seguida nomeei pessoas que não tinham nada a ver com política: o [ex-presidente da estatal Henri] Philippe Reichstul era um técnico; depois foi nomeado o [Francisco] Gros, que tinha sido do Banco Central, no tempo anterior a mim. E, no caso dos diretores, eventualmente [houve nomeação política]. Um foi o [hoje senador pelo PT-MS] Delcídio [do Amaral], que veio de fora da Petrobras. Mas não houve conchavo político para indicar diretores.
Valor: A imagem ou o mito da capacidade técnica da presidente Dilma é manchada com o episódio?
FHC: É mito. Foi criada uma imagem de que ela seria uma gerentona, a madrinha do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. Bom, a realização do PAC é de baixo desempenho... Não quero atribuir responsabilidade diretamente a ela. Mas é uma imagem que foi criada e não corresponde aos fatos. Pode ser até que ela seja uma pessoa dedicada. Dizem que é. Que cobra e tal. Mas presidente da República é diferente. Não tem que ser gerente. É governança. Ter visão e capacidade de somar gente, de chamar os mais capazes, de estar bem assessorada. A falha está mais nisso, do que propriamente nela. A presidente não é e não deve ser gerente. Talvez seja arriscado se intrometer no cotidiano. A Petrobras tem corpo técnico competente, mas o número de funcionários dobrou de 40 mil para 80 mil. E isso não corresponde ao aumento da produção.
Valor: A compra da refinaria de Pasadena levanta suspeita de irregularidade e corrupção.
FHC: O preço pago foi muito mais do que seria razoável e não é compreensível que os próprios corpos técnicos da Petrobras tivessem feito aquele parecer que fizeram. E que tivessem posto as cláusulas que puseram. Pode-se dizer: e o conselho [de administração] não leu? Bom, o conselho quando se reúne decide em função das informações que chegam à mesa. Não quero culpar os conselheiros e, por consequência, também não estou culpando a Dilma, a presidente do conselho. Mas obviamente chegou-se a esse ponto pelas interferências políticas na Petrobras e pelo fato de que, possivelmente - não se tem a conclusão ainda - tenha havido aí um propinoduto, no caminho.
Valor: Também não há indícios de propinoduto que mereceriam ser investigados por uma CPI como o escândalo da Alstom e os governos do PSDB em São Paulo?
FHC: Querem misturar e levar para outro lado. CPI tem que ser em função de um caso específico. Neste caso, a gente tem um problema real. Tem um diretor que está preso. Tem outro acusado de ter sido negligente. A própria Petrobras levou muito tempo - e aí entra a responsabilidade do governo também - para tomar alguma medida contra esse diretor. Então, tem fatos específicos. Agora, acho que seria um erro, de quem vai conduzir a CPI, caso se instale, de se acusar, na partida, o governo disso ou aquilo. Primeiro, deve-se analisar profundamente o que aconteceu na Petrobras. Porque a Petrobras é estratégica mesmo, não é uma empresa qualquer. Precisa focar no que deu errado e corrigir. Mais tarde, se houver responsabilidade política, é outra questão. Mas não pode ser ponto de partida.
Valor: O sr. aceitaria ser o vice na chapa de Aécio?
FHC: Não. O próprio PSDB é que acha que seria positivo. É até possível que seja. Mas não cabe. Tenho 82 anos. Seria uma irresponsabilidade, pessoal, familiar e política.
Valor: Quem o sr. prefere?
FHC: Seria útil se fosse alguém de São Paulo, porque é onde vai ser a grande batalha eleitoral. Mas pode ser de outro partido e também de outro grande colégio eleitoral.
Valor: O senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) é o mais indicado?
FHC: Se fosse hoje, não tendo outro no horizonte... Não que eu não goste do Aloysio. O nome dele é muito bom.
Valor: O pré-candidato do PSB, Eduardo Campos, tem encantado setores do empresariado e obtido mais holofotes que Aécio Neves. Isso preocupa pelo risco de o PSDB ficar fora de eventual segundo turno?
FHC: Em primeiro lugar, que o Eduardo abra seu espaço é normal. Em segundo, o holofote não está na mão do candidato. Está na mão da mídia. Está na mão dos centros, principalmente de elite. Não são esses centros que vão tomar a decisão. É a massa. O Aécio tem uma vantagem de ponto de partida que é ter força em Minas [10,6% do eleitorado]. Eduardo tem força em Pernambuco [4,6%]. [Além disso] o Aécio dispõe de um partido que é mais enraizado do que o PSB. O holofote vira para ele [Campos], mas não significa que o eleitorado vire para ele.
Valor: Se é a massa que decide, a comemoração de Aécio em virtude do otimismo do mercado, com a subida da Bovespa após a divulgação da queda na avaliação do governo Dilma, não foi um exagero?
FHC: O que prevalece no voto é a população. Mas há uma certa comunicação entre o mal-estar produzido no topo e na base da sociedade. O povo não tem o grau de irritação que tem o mercado porque não focou ainda na eleição. O mercado foca com anterioridade, antecipa. Eu nunca tinha visto o mercado comemorar o fato de uma pesquisa ter sido negativa e aumentar o valor de ações. É inacreditável. É uma coisa meio inédita. E preocupante para a Dilma. Um setor importante do Brasil, bem informado, está achando que o governo vai mal.
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