- O Globo
A folia nunca poupou nada nem ninguém. Tem um espírito similar ao da caricatura. Não existe caricatura a favor
E, de repente, em meio a tanto desgosto, tanta dor e violência, eis que chega o carnaval, espargindo confete e purpurina sobre as nossas vidas. Como se essa festa, tão mais velha que o Brasil, quisesse provar que, apesar de nossos múltiplos pesares, ainda conseguimos vestir e viver fantasias. É graça dada aos carnavalescos a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, vai vida afora em busca de alguma alegria possível. O carnaval tem leis que só os carnavalescos reconhecem e respeitam.
O carnaval começa hoje trazendo sátira e polêmica, com alta voltagem de politização. Aquela em torno das marchinhas de velhos carnavais é o reflexo de uma questão mais complexa, a relação entre a História e a Cultura. A História não se reescreve, o que foi, foi e continuará tendo sido. As rupturas históricas são ruidosas. Já a cultura vai mudando dia a dia, em movimentos imperceptíveis, até que um dia se percebe que o que foi já não é.
O Brasil dos anos 50 cantava a “Nega maluca”. Um tempo em que era comum um homem, sem culpas, engravidar a empregada negra. Feliz, ia jogar sinuca. Era então que “uma nega maluca” vinha com o filho no colo dizendo pro povo que o filho era dele. A marchinha contava uma historia que acontecia, de fato. Ele sempre repudiando essa “nega maluca” que, na vida real, tinha ingressado no bloco das mães solteiras. A música, uma sátira social, é, há 60 anos, um grande sucesso do carnaval. Ainda hoje há quem continue jogando sinuca e renegando os filhos que faz mas, em tempos de DNA, a “nega maluca”, seja ela branca, mulata ou negra, já era.
Nos anos 60, as famílias bem pensantes se perguntavam, sim, se o Zezé, com a sua longa cabeleira, seria gay. Se fosse, que horror! A ordem era cortar o cabelo dele, um transviado, acentuando bem as últimas sílabas. A música animava bailes infantis e sacudia o Gala Gay, um baile disputadíssimo, frequentado por gays e não gays. Os gays se esbaldavam no carnaval, cantando a cabeleira do Zezé.
A autoestima ferida por fatos bem mais graves do que a marchinha deu a volta por cima e hoje desfila em clima carnavalesco nas marchas paradas do orgulho gay, um bloco animadíssimo, que já arrastou três milhões de pessoas em São Paulo. Ninguém mais precisa perguntar se o Zezé é ou não é, ele mesmo, quando quer ser, se apresenta. Ou não, quando não quer dar satisfações sobre a sua cabeleira. A marchinha, um sucesso incontornável, fica como crônica de um Brasil ultraconservador.
O carnaval nunca poupou nada nem ninguém. Tem um espírito similar ao da caricatura. Não existe caricatura a favor. O barbudo vestido de mulher com seios enormes e travesseiro no traseiro, as pernas peludas apertadas na meia arrastão, empunhando um escovão à guisa de estandarte ou vestido de noiva, jogando o buquê para o povo, pode ser um prato cheio para um psicanalista ou simplesmente uma sátira dirigida às mulheres. Lá vai ele, abraçado de um lado a uma louríssima índia de espanador, do outro, a uma Helena de Troia negra. Lá vai o Brasil, rindo de si mesmo.
“O teu cabelo não nega” é racista? É, quando diz “mas como a cor não pega, mulata”. Não é, quando diz “mulata, eu quero teu amor”. Esse é o segredo da população brasileira, uma admirável paleta de todos os matizes de pele. Felizmente, salvo talvez uma minoria ridícula que não frequentaria blocos, a última coisa que somos é brancos, orgulhosos de sê-lo. A música é quase um hino na história do carnaval.
A questão racial no Brasil é das mais complexas, um dos nós do conflito original dos brasileiros, que consiste em sermos essa mistura de brancos, índios e negros. Filhos de três civilizações com histórias diversas, cosmogonias contraditórias, deuses diferentes, que se misturaram e que se aceitam e se recusam ao mesmo tempo, nutrindo uma eterna ambiguidade e insatisfação consigo mesmos. A identidade do Brasil é a diversidade: esse é o nosso paradoxo e maior riqueza, nossa comunidade de destino.
Mulatas e cachaça são grandes temas do carnaval. Em tempos de Lei Seca, letras como “as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar”, ou “pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, (...) só não quero que me falte a danada da cachaça”, poderiam ser ouvidas como desacato. Todos cantam, e nem por isso somos um povo de alcoólatras que dirigem bêbados.
A Lei Seca pegou. O racismo é justamente punido, a homofobia condenada. Marchinhas são antes reminiscências do que uma ofensa atual a quem quer que seja. São o país do carnaval em ritmo de marcha, cantando... e se contando.
*Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
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