- O Globo
A sensação que se tinha ontem é de um país prisioneiro de um roteiro que se repete, mas desta vez com sinais trocados e algumas diferenças. Não era mais a presidente Dilma recebendo relatório favorável à admissibilidade do impeachment, mas sim o presidente Temer com relatório pelo recebimento da denúncia por crime comum. Os governistas de antes falavam em golpe, os de hoje falam em conspiração.
Dilma foi acusada de crime de responsabilidade por ter atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. E foi exatamente o que ela fez. Não houve golpe, mas sim o julgamento dos seus atos de governo que feriram a lei, desorganizaram as contas públicas e arruinaram a economia. O preço está sendo pago até hoje pelo país.
Temer é acusado de corrupção passiva. Não há conspiração contra ele, mas sim a dúvida razoável sobre um encontro cercado de brumas. Ele recebeu um empresário investigado em várias operações no palácio residencial, em horário tardio, sem identificação na portaria, e a conversa, gravada, foi sobre presos, potenciais delatores e como estavam sendo controlados, e sobre interesses do empresário em alguns órgãos públicos. Temer nomeou seu representante um deputado depois flagrado recebendo mala de dinheiro.
A defesa pede provas quando este é o momento em que bastam os indícios. E há, como disse o relator, deputado Sérgio Zveiter, fortes indícios. A defesa alega quebra de privacidade e ao mesmo tempo diz que a conversa era com o maior empresário do setor de carne. Ou seja, não era uma reunião para tratar de assuntos privados. A defesa invoca o princípio do in dubio pro reo. O relatório de Zveiter abraça a tese do in dubio pro societate.
O debate entre quem tem que ser protegido, a sociedade ou o indivíduo, tem que ser entendido no contexto. Zveiter apresentou vários votos de ministros do STF defendendo o princípio do in dubio pro societate na fase da pronúncia, da aceitação da acusação para iniciar um processo. “O juiz verifica, nessa fase, tão somente se a acusação é viável”, disse num desses votos citados a ministra Carmem Lúcia.
Há uma razão a mais para se pensar, nesta fase, na defesa da sociedade. Temer é o presidente, ele governa os brasileiros, e os cidadãos precisam saber se houve ilegalidade naquela reunião ou se há procedência na acusação feita pelo procurador-geral da República de que ele era o destinatário final dos R$ 500 mil.
Em vez do advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo, quem ocupou a defesa foi o advogado de Temer, Antônio Cláudio Mariz. Estilos diferentes, mas igual veemência. Mariz usou alguns argumentos sofríveis, como o de que o presidente não sabia que Joesley havia cometido crimes, por isso o recebeu. Ora, ele era investigado na Greenfield, Sepsis, Cui Bono e Bullish. Deveria ter se acautelado e recebido o empresário em seu gabinete, em horário normal, com transparência e na presença de testemunhas.
Houve alguns argumentos melhores. Mariz diz que algumas pessoas ouvidas disseram que nada foi pedido de estranho ao Cade, nem benefício foi concedido pelo governo. Esse é um importante caminho para a investigação. E protestou, o advogado, pelo fato de o procurador não ter considerado esses depoimentos que não confirmavam sua tese.
Esse mandato presidencial, de 2014-2018, ficará na história como um dos mais tumultuados de que se tem notícia, com o impeachment de uma presidente e a denúncia por corrupção contra o presidente que a sucedeu. A chapa foi injustamente absolvida da acusação de uso de dinheiro ilegal extraído de contratos com a Petrobras, apesar da abundância de provas.
Zveiter, que até ontem era do partido do presidente — foi ameaçado de expulsão pelo deputado Carlos Marun —, argumentou em seu voto que arquivar as acusações não restabeleceria o vigor necessário do governo para enfrentar a crise, pelo contrário, “impedir o avanço das investigações e seu devido julgamento seria ampliar perigosamente o abismo entre a sociedade e as instituições que a representam”.
Esse é o ponto principal: como reduzir o abismo entre representados e representantes? Não há de ser fechando-se os olhos para o que houve de estranho naquela noite do Jaburu.
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