- O Estado de S. Paulo
Cabe, neste momento hobbesiano, estar atento 'aos tombos dos dados' que podem nos afetar
O noticiário recente mostra que a situação internacional apresenta crescentes riscos à segurança que inquietam muitos. Em momentos como este, vale lembrar que “somos do mundo e não apenas estamos no mundo”, como sublinhava Hannah Arendt, e que “o mundo não dá a ninguém inocência nem garantia”, como advertia Guimarães Rosa.
É sempre útil começar a discussão por aquilo que aponta o significado das palavras, e deste modo para a pertinência da dicotomia segurança/insegurança.
Segurança, do latim securus, sem inquietação, mais o sufixo aumentativo ança significa ação de segurança, que confere estabilidade. Insegurança, por contraste e oposição, é a situação do que não é seguro e não oferece a confiança, o que no plano internacional passa por componentes de imprevisibilidade.
São os componentes da previsibilidade que conferem à ordem mundial uma certa estabilidade, que ensejam a possibilidade de administrar conflito e cooperação por meio de normas mutuamente acordadas. Em contraposição, são os componentes da imprevisibilidade que abrem espaço para uma leitura hobbesiana da vida internacional na qual a força e a violência adquirem realce crescente.
A vigência de uma leitura hobbesiana é uma expressão da atual insegurança internacional. Ela tem como pano de fundo a disjunção entre ordem e poder, vale dizer, a incapacidade de uma ação conjunta geradora de poder suficiente no plano internacional para tornar realizável uma ordem mundial mais previsível e estável. Esta disjunção tem como nota explicativa a prevalência de múltiplas modalidades de tensões difusas de variável grau e intensidade. Entre elas as relacionadas a uma nova distribuição dos elementos constitutivos do poderio dos Estados; as do equilíbrio que resultam das especificidades regionais; as provenientes da geografia das paixões, com o seu elã fragmentário; as que emanam do terrorismo que propicia a destrutiva globalização da violência; as que fluem da escala de desigualdades que vem aumentando no mundo.
É por isso que são muito significativos os desafios diplomáticos de encontrar interesses comuns e compartilháveis e administrar a Torre de Babel da diversidade cultural e do conflito de valores.
É por essa razão que a atual multipolaridade do poder desborda das normas do multilateralismo, intensificando a instabilidade e trazendo insegurança na medida em que estas normas não cumprem apropriadamente com as funções tanto de indicar padrões aceitáveis de conduta quanto a de informar sobre os prováveis comportamentos dos atores internacionais.
Neste contexto, o ciberespaço da era digital, com a instantaneidade do tempo da transmissão da informação, acentua a porosidade das fronteiras e propaga em todos os âmbitos e esferas as múltiplas tensões difusas presentes na vida internacional.
Exemplifico com um dos desdobramentos da globalização e da dinâmica do embate entre a geografia das paixões e dos interesses que vêm gerando as tensões que resultam da mudança da tradicional distinção entre nômades e sedentários. Estas vêm afetando o Estado nacional e seu tripé governo, população e território e, por via de consequência, a lógica interestatal das relações internacionais. É o que aponta Pierre Hassner.
Os nômades são os que se valem ou padecem as características da sociedade contemporânea. Os primeiros são, para o bem e para o mal, os integrados que transitam pelo mundo. Contrastam com o apocalíptico da crescente massa de refugiados - dos deslocados no mundo - como os venezuelanos, vítimas do arbítrio e da inépcia do bolivarianismo de Maduro. No plano geral, boa parte dos refugiados é vítima da convulsão da geografia das paixões. Fogem sem encontrar destino e acolhida das perseguições, dos conflitos religiosos, do ímpeto excludente das identidades étnicas, da falta de oportunidades.
Este é um dos fatores das tensões internacionais comprometedoras das aspirações normativas - dos valores - que no pós-2.ª Guerra, reforçados pela fase inicial do fim da guerra fria, entraram na pauta internacional por obra de uma política internacional dos direitos humanos.
Os sedentários são os muitos, se não a maioria, dos que à maneira tradicional integram a população do território de um Estado, vinculados à jurisdição nacional de seus governos.
Entre os sedentários incluem-se os atingidos pela insegurança econômica e social, trazida pela revolução tecnológica da sociedade contemporânea que põe em risco os empregos rotineiros de baixa e média qualificação das profissões e ofícios do capitalismo do século 20.
São as paixões e ressentimentos destes sedentários que impactam a vida dos países, comprometendo a confiança nas instituições democráticas, induzindo no plano internacional a mais muros e menos pontes. É um elemento da crise da democracia no momento atual.
Este olhar indica o alto grau de insegurança internacional, proveniente da disjunção entre ordem e poder e da multiplicidade de tensões internacionais, propiciadoras, em conjunto, de uma leitura hobbesiana da realidade internacional. Daí novos riscos e incertezas e a importância da sua avaliação na condução da política externa do nosso país e dos seus objetivos, como política pública, de traduzir necessidades internas em possibilidades externas no cenário internacional contemporâneo.
Deve-se ao economista Frank Knight a distinção entre risco e incerteza. O risco tem inúmeras dimensões que se multiplicaram no mundo contemporâneo. O que caracteriza o risco é a possibilidade de ser estimado e calculado com alguma orientação de certeza. O que diferencia a incerteza do risco é a efetiva dificuldade de estimativa e cálculo. Isso provém do inesperado, e, como observava Guimarães Rosa, “o poder, aos tombos dos dados, emana do inesperado”. Cabe pois, neste momento hobbesiano de insegurança internacional, estar atento “aos tombos dos dados” que podem nos afetar como país.
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Celso Lafer é ex-ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002); professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP.
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