terça-feira, 18 de setembro de 2018

Nelson Paes Leme: O verdadeiro atentado à democracia

- O Globo

Modelo federativo e tributário que vimos praticando está falido. Idem o capitalismo de Estado que adotamos

Nem todos os estudiosos de história constitucional comparada e ciência política têm sedado conta de que oque está e mandamento nestas eleiçõe sé o início traumático de uma nova e indispensável transição de gerações e métodos de operação do Estado. Como em toda transição democrática, o novo surge de modo ainda caótico e disforme. Emerson tem uma famosa frase que tudo resume no modo dialético: “Adote o ritmo da natureza: o segredo dela é a paciência”.

O fim da Nova República começou com o mensalão e se aprofundou com o petrolão. Mas é, na verdade, um movimento autofágico inerente ao processo dialético de renovação de métodos de se fazer política no Brasil. Sai a derme necrosada do estatismo da República Velha e surge, desbridado, o novo epitélio róseo da revolução técnico-científica e do novo empreendendorismo. Desaparece a luta de classes, e surge a luta pela sobrevivência da biosfera e das espécies com as alternativas energéticas em franco progresso.

Mas, como em toda transição, o velho não sai de cena imediatamente. É o que ocorrerá neste fim de década. A renovação só aparecerá na próxima ou nas próximas décadas. A partir de 2022, provavelmente, começará a verdadeira consolidação da democracia no Brasil. Esse é o dado científico e estrutural que a crônica nem sempre acompanha com sua visão conjuntural e naturalmente imediatista de informar e explicar os fatos no momento em que se dão.

Um outro dado diferencial desta revolução é o movimento subterrâneo e imprevisível das redes sociais. Os meios de comunicação tradicionais não conseguem acompanhar essa dinâmica simplesmente porque é inusitadamente interativa e muito rápida. Um mero youtuber ou blogueiro tem milhões de seguidores, súbita e inexplicavelmente. Isso também influencia os institutos de pesquisa de opinião, cuja metodologia tradicional está ainda voltada para forças mais lentas em seus movimentos. Tudo que é sólido se desmancha no ar, diria hoje Berman, apud o próprio Marx, com muito mais propriedade ainda, certamente. De modo que tudo pode acontecer até a boca dessas urnas insuscetíveis de prognósticos prováveis. Mas o certo é que não se pode contar com transformações abruptas nem movimentos radicais, embora radicalismos à esquerda e à direita namorem sempre os movimentos todos, principalmente em tempos como os que estamos a viver.

O modelo federativo e tributário que vimos praticando está literalmente falido. Idem o capitalismo de Estado que adotamos desde a Primeira República. Idem nossa democracia representativa. Idem nosso pluripartidarismo que não representa a sociedade civil. São tantas as falências estruturais que não há como se as consertar numa única legislatura. Muito esforço e muito talento de especialistas serão ainda insuficientes, tal a profundidade do tumor. Talvez aí resida o maior desafio de todos: como enfrentar o distanciamento entre sociedade e Estado? Entre representantes e representados? O bordão “não me representa” virou o jargão preferencial, sobretudo dos jovens que acordam para a “novidade” do individual a serviço do coletivo. E ingressam no fazer político já tangenciando a anarquia e o desalento.

Mas o mais grave é o silêncio perplexo ou as posições equivocadas dos scholars. Estas são de doer num contexto onde não se vislumbram lideranças equilibradas que falem coisa com coisa. Onde os candidatos mais cotados à Presidência são o voto nulo ou a abstenção, seguidos por um presidiário condenado em várias instâncias, respondendo por múltiplos crimes e um capitão que não se sabe bem por que não chegou a coronel de seus próprios soldados. Ambos claudicantes no manejo primário do idioma pátrio e das próprias ideias. Mas a facada num dos candidatos só atrasa esse processo de transformação.

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Nelson Paes Leme é cientista político

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