O vaivém nos últimos dias a respeito do reajuste salarial do funcionalismo, defendido com obstinação pelas corporações malgrado o estado crítico das contas públicas, serviu para lembrar a existência de dois países chamados Brasil: o Brasil real, no qual a maioria dos trabalhadores, se der sorte de arranjar emprego, recebe salários determinados pelas duras condições de mercado, pode ser demitida a qualquer momento e tem escassa capacidade de mobilização política; e o Brasil dos servidores públicos, onde grande parte de seus felizes habitantes conta com estabilidade no emprego, ganha muito acima da média do mercado, aposenta-se em condições privilegiadas e dispõe de imenso poder de convencimento em Brasília.
O fato é que o Brasil dos servidores públicos está exaurindo o Brasil dos trabalhadores comuns, de cujo rendimento saem os impostos que sustentarão os proventos dos cidadãos daquele outro país. E isso fica claro não apenas quando se comparam as discrepantes condições de trabalho e de aposentadoria de uns e de outros, das quais se destacam os muitos penduricalhos e benefícios de que usufruem várias categorias de servidores públicos, a maioria dos quais jamais seria obtida no setor privado. A exaustão do Brasil real se dá especialmente porque uma parte considerável de suas agruras fiscais se deve à sempre crescente demanda de recursos por parte do país dos servidores públicos - invariavelmente, é claro, movido pelas melhores intenções.
Um exemplo caricato desse discurso se deu quando o ministro Ricardo Lewandowski defendeu para ele e seus colegas de Supremo Tribunal Federal um reajuste salarial de 16,38%, com impacto na folha de todo o Judiciário e, por tabela, de todo o resto do funcionalismo. Lewandowski sugeriu que aquele porcentual era quase nada perto dos “milhões e milhões de reais que os juízes federais e estaduais recuperam para os cofres públicos” em processos contra corruptos - como se os juízes estivessem fazendo um favor a seus vizinhos do Brasil real ao punir corruptos, razão pela qual a majoração salarial seria uma justa comissão de sucesso.
Mas o problema é que a mentalidade que alimenta esse Estado a caminho da inanição graças à voracidade cada vez maior das corporações vai muito além de raciocínios quase anedóticos - mas sem a menor graça - como esse do ministro Lewandowski. Predomina há muito tempo no País a visão segundo a qual é preciso garantir uma série de direitos sociais para a população em geral, especialmente os mais pobres, e isso só seria possível com a manutenção de um Estado forte, bem estruturado e, claro, com uma elite bem remunerada. O problema é que, quanto mais direitos se criam - e a Constituição atual mostra que não há limites para essa criatividade -, maior tem de ser a máquina supostamente dedicada a atender-lhes.
Na prática, portanto, o resultado é o exato oposto do pretendido: quanto maior o Estado, quanto mais prebendas aufere a elite dos servidores públicos, quanto mais recursos são dragados, menor é a capacidade dessa máquina estatal de atender às necessidades do Brasil real.
Os indicadores sociais, por exemplo, só fazem piorar. Dados divulgados em julho mostram que a mortalidade infantil avançou 4,8% em 2016 em relação a 2015, o primeiro aumento desde 1990. Em grande medida, esse desempenho lamentável é fruto de outro vergonhoso déficit, o de saneamento básico - apenas metade dos brasileiros tem acesso a coleta de esgoto. Ademais, os mais recentes dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) mostram que 70% dos alunos que terminam o ensino médio têm nível considerado insuficiente em matemática e português. A indecorosa lista de falhas desse Estado balofo inclui ainda o colapso da segurança pública, o estado tenebroso da infraestrutura e as carências extremas do sistema público de saúde.
Enquanto isso, como noticiou recentemente o Estado, a empresa estatal criada em 2011 pelo governo de Dilma Rousseff para tocar o megalomaníaco projeto do trem-bala continua a funcionar, com 146 servidores, vários dos quais com salários acima de R$ 20 mil. Como se sabe, o trem-bala não saiu do papel, mas, no Brasil da fantasia, isso não tem a menor importância. Os alicerces do Estado só se abalam quando os caprichos das elites corporativas são negados.
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