- Valor Econômico
Reforma da Previdência será outro gigante a enfrentar
Era 2005 e o senador Renan Calheiros candidatava-se pela primeira vez à presidência do Senado. Habilidoso, com dez anos de mandato na Casa, o emedebista desde então distribuía afagos e favores. Quando um eleitor em potencial reclamou do gabinete, apertado e distante do plenário, Renan ofereceu-lhe o seu - amplo e localizado na concorrida Ala Teotônio Vilela - e assegurou o voto.
Naquela mesma campanha, outro senador prometeu-lhe apoio desde que Renan lhe apresentasse um laudo comprovando a inviolabilidade do painel para se certificar do sigilo de seu voto.
Os senadores não haviam superado o trauma com a violação do painel na votação da cassação do senador Luiz Estevão, em uma articulação conjunta do então presidente do Senado, o todo-poderoso Antonio Carlos Magalhães, e o líder do governo, José Roberto Arruda. Veio a público o voto da senadora Heloísa Helena, contrário à cassação, num contrassenso ao que ela pregava publicamente.
Esse episódio atesta, 19 anos depois, como o sigilo do voto interfere na história da República. Se tivesse prevalecido no sábado, o desfecho poderia ter sido outro, com Davi Alcolumbre vencido, e Renan reconduzido ao quinto mandato de presidente da Casa.
Ao antever o fracasso, Renan invocou a previsível metáfora bíblica: "Eu retiro a postulação porque entendo que o Davi [Alcolumbre] não é o Davi [rei dos judeus]; Davi sou eu, ele é o Golias, atropela o Congresso, o próximo passo é o Supremo Tribunal Federal, sem o carro e sem o sargento". Ele se referiu ao apoio do governo Bolsonaro ao seu adversário.
Foi a deixa para o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni - que todo o tempo deu suporte nos bastidores à postulação de Alcolumbre - retrucar na rede social: "Davi respondeu: - Você vem contra mim com espada, lança e dardo. Mas eu vou contra você em nome do Senhor Todo-Poderoso".
A ascensão de Alcolumbre é uma vitória tripla: dele próprio, do Palácio do Planalto e do DEM, que ressurgiu das cinzas. "Ninguém morre na política", alerta o ex-líder do DEM Pauderney Avelino. Relembra que em 2010, o então presidente Lula bradou que era preciso "extirpar o DEM" da vida pública. Quase uma década depois, a sigla comanda o Senado, a Câmara, a Casa Civil e mais dois ministérios.
Aos 41 anos, até então um senador inexpressivo, Davi - judeu, como o homônimo da Bíblia - tem outro Golias para enfrentar: conduzir a votação da controvertida reforma da Previdência. Uma missão espinhosa, num cenário em que os senadores se movem no compasso das redes sociais, e a sociedade tende a se opor às mudanças na aposentadoria.
O outro "Golias" é Renan. É uma incógnita que postura ele assumirá a partir de agora. Quem o conhece a fundo, pondera que o emedebista dificilmente irá para o confronto aberto com o governo. Mas nas coxias, tramará contra os desafetos.
É importante lembrar que, entre 2007 e 2009, Renan desceu ao Inferno de Dante, navegou na barca de Caronte pela bacia das almas, e conseguiu voltar ao Paraíso do poder. Renunciou à presidência da Casa em meio a denúncias de recebimento de propina de empreiteiras, e passou o ano de 2008 em auto-exílio no 15º andar. Só aparecia às quintas-feiras, com o plenário vazio, para gravar discursos para a TV Senado. Ressurgiu em 2009 como o combativo líder do MDB. Em 2013, reelegeu-se presidente da Casa.
A façanha de Alcolumbre, até agora, foi retirar do senador Petrônio Portella, morto em 1980, o título de presidente mais jovem do Senado. Em 1971, quando se elegeu para o comando do Senado, Portella tinha 46 anos.
Há mais pontos em comum: ambos vêm de Estados pobres e pequenos, Alcolumbre do Amapá, Portella do Piauí. Na prática, são do mesmo partido. Portella era uma liderança nacional da Arena, que deu sustentação do regime militar. A Arena deu origem ao PDS que virou PFL que virou DEM, sigla de Alcolumbre, que presidirá o Senado como aliado de um governo eleito pelo voto popular, mas sustentado pela cúpula militar.
Outra coincidência pode ser a liderança na condução de reformas relevantes. Reconduzido à presidência do Senado, em 1977, Portella teve importante papel na distensão política ao conduzir a votação da emenda constitucional que revogou os atos institucionais da ditadura militar.
Alcolumbre ainda tem de construir a liderança sobre 80 senadores e comprovar que tem pulso para conduzir a votação das reformas, sem submissão ao Planalto.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, liderança nacional do DEM, diz que Alcolumbre mostrará independência, e que o cenário é propício para o avanço das reformas. "Pela primeira vez na história a pauta é convergente com o partido, com o palácio e com o Congresso, tem tudo para andar ligeiro!"
A dificuldade de Alcolumbre mostrar autonomia em relação ao Planalto começa pelo seu próprio gabinete, que emprega a esposa de Onyx Lorenzoni. Um aliado minimiza o fato, observando que Onyx a conheceu quando ela já estava lotada no gabinete do correligionário.
Aliados apontam a disposição e a coragem de enfrentar Renan como atestados de sua independência. Dizem que não foi só o apoio do Planalto, e citam precedentes. A primeira vitória sobre Renan se deu em 2015, quando Alcolumbre elegeu-se presidente da Comissão de Desenvolvimento Regional por aclamação. Renan queria emplacar no cargo o senador Hélio José, um de seus leais escudeiros.
Também sugerem uma "conspiração" divina a favor de Alcolumbre, diante do ocaso dos caciques do MDB derrotados nas urnas, já que Eunício Oliveira e Romero Jucá eram candidatos naturais à presidência da Casa. Esse fato favorecia o discurso da mudança. "Foi tudo dando certo e ele se viabilizou como o anti-Renan", diz Pauderney.
O nome completo do presidente do Senado é "Davi Samuel", em alusão ao livro do profeta que narra a parábola de Davi e Golias. Samuel recebeu de Deus o comunicado de que o próximo rei seria um dos filhos de Jessé. Davi era o caçula, ruivo, franzino e improvável. Quando se viram um diante do outro, o profeta ouviu de Deus: "Este é o homem". Resta saber se o Davi que preside o Senado será o "homem" das reformas.
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