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O crematório do Ninho do Urubú
Direto ao ponto: salvo se algum dos garotos, ou um terrorista infiltrado nas dependências do clube, tenha tocado fogo no alojamento onde dormia parte do futuro do Flamengo, o que aconteceu ontem no Ninho do Urubu tem um único culpado: a diretoria. Mais precisamente: as diretorias do Flamengo desde que aquelas instalações foram construídas.
Na verdade, se pode falar em instalações, mas em construção seria exagero. Juntaram vários contêineres, desses transportadas por navios e carregados de mercadorias. No espaço exíguo de cada um, claustrofóbico, montaram beliches, apinharam armários e dispuseram um aparelho de televisão. A saída era estreita, e única. Não havia extintores de incêndio, a não ser do lado de fora.
O orçamento total do Flamengo para este ano é de R$ 750 milhões. Pelo menos R$ 100 milhões foram reservados só para reforçar o elenco. Em um clube forrado com tanto dinheiro, capaz de fazer a torcida exultar com contratações milionárias, adolescentes promissores dormiam e sonhavam com glórias em um espaço que se transformou em um forno, torrando-os cruelmente vivos.
A prefeitura do Rio lacrara o Campo de Treinamento (CT) do Flamengo em outubro de 2017. Motivo: o clube havia sido multado 30 vezes por falta de alvará de funcionamento. Sequer pagou o que devia. Naquele mesmo ano, o Flamengo reabriu o que fora fechado. Na prática, mandou a prefeitura às favas. O clube nunca pediu licença para construir qualquer coisa na área atingida pelo fogo.
“A área de alojamento atingida pelo incêndio não consta do último projeto aprovado pela área de licenciamento, em 05/04/18, como edificada. No projeto protocolado, a área está descrita como um estacionamento”, segundo nota oficial distribuída pela prefeitura. “Não há registros de novo pedido de licenciamento da área para uso como dormitórios”.
De resto, desde 2015, o Ministério Público do Rio entrara na justiça com uma ação cívica pública exigindo que o clube melhorasse as condições de alojamento dos jovens jogadores que precisassem morar no Ninho do Urubú, “inferiores até mesmo àquelas ofertadas aos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas” em unidades prisionais. Deu em nada.
“Quase 500 atletas nascidos no Brasil que já atuavam no exterior trocaram de país no ano passado, e R$ 3,2 bilhões foram movimentados”, apurou Martín Fernandes, repórter de O Globo. “Cerca de R$ 160 milhões voltaram para os clubes onde esses jogadores foram formados. Deveria ser dinheiro suficiente para garantir que ninguém morresse queimado num alojamento”.
Para não terem que responder a perguntas incômodas, os diretores do Flamengo passaram o dia de ontem em reuniões e convocaram outras para hoje. O presidente do clube limitou-se a fazer um pronunciamento, sem direito a ser interrompido. Repetiu os lugares comuns que autoridades acuadas costumam usar quando estão diante de algo dramático que possa vir a culpá-las.
O que mudou na política pública de proteção a museus depois do grande incêndio que destruiu no Rio o Museu Nacional? Entre Mariana, há 3 anos, e Brumadinho, há 15 dias, nada mudou na política de fiscalização de barragens.
Com uma folha corrida de centenas de anos de estúpida impunidade, quem pode garantir que este país jamais assistirá a algo semelhante ao que ocorreu ontem?
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