Termo tem sido usado pelo alto escalão do governo do presidente Jair Bolsonaro; especialistas explicam
Carla Bridi e Paulo Beraldo / O Estado de S.Paulo
Termo repetido com frequência entre integrantes do alto escalão do governo do presidente Jair Bolsonaro, o "marxismo cultural" entrou em debate novamente nas últimas semanas.
O novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu em entrevista ao Estado o combate ao "marxismo cultural". Questionado sobre como propõe fazer isso, disse: "No curto prazo, tomando cuidado com tudo o que vai sair do MEC, como livros didáticos", disse. "Estamos preocupados com vazamentos, com sabotagens. Mas não estou indo lá caçar ninguém. Não sou caçador de comunistas. Não gosto do comunismo, mas aceito o comunista. Quero a redenção dele".
O Estado ouviu dois especialistas em marxismo para explicar o significado da expressão e entender por que ela veio à tona.
• O que é o "marxismo cultural"?
A pesquisadora Daniela Mussi, doutora em ciência política e pesquisadora da USP, explica que o "marxismo cultural" é uma expressão popular "sem rigor teórico" que não é reconhecida entre intelectuais. Segundo ela, nenhum dos autores atribuídos a ela - como Karl Marx, Antonio Gramsci ou os representantes da Escola de Frankfurt - cunhou ou usou esse termo como um conceito.
Já o professor Marco Aurélio Nogueira, doutor em ciência política e professor da Unesp, avalia que "o termo é produto de uma profunda ignorância teórica no que diz respeito ao marxismo". Para ele, trata-se de uma "operação para estigmatizar a esquerda". Ele pondera que não é clara a definição de esquerda por parte dos usuários do termo "marxismo cultural". "Podem ser comunistas, socialistas, simpatizantes da esquerda no geral".
• O uso está correto?
Para a professora Daniela Mussi, não. "Esse termo passou a ser usado como pejorativo, sinônimo de manipulação e estratégias de distorção cultural, como um plano de conquista do poder por meio da cultura e da educação, mas isso não tem nenhuma sustentação nos autores. É um uso político".
"O uso pouco rigoroso de termos que surgem no senso comum não contribuem nem para um aprofundamento daquilo de que fato foi o pensamento dos autores", avalia. "Também não contribui para a democracia e para a construção de uma esfera pública crítica."
A análise do professor Marco Aurélio também sugere que não há uso correto do termo. Ele explica que a teoria marxista, assim como qualquer pensamento filosófico, incluindo o capitalismo, aborda diversos aspectos da vida humana, em sociedade. "Existe no marxismo a economia, a política, organização social, ideologias e os valores culturais, que é aquilo que orienta as pessoas nas suas manifestações culturais. Porém, quem fala em 'marxismo cultural' não fala da concepção cultural do homem, ignora-se isso", explica.
• Por que se difundiu?
Daniela Mussi acredita que a expressão tenha tomado forma para se referir a autores e lideranças políticas "que de alguma forma se preocuparam com a disputa política não só no sentido da formação do partido, da disputa do Estado, mas também como valores, no sentido de aspectos culturais". "Acredito que venha daí, especialmente pelas correntes das novas direitas", avalia.
Marco Aurélio aponta duas vertentes relacionadas à cultura no marxismo. Uma é relacionada aos valores da sociedade; a outra à produção artística. Para ele, os usuários do termo "marxismo cultural" têm a preocupação de que os ditos "marxistas práticos" dos ideais "estariam privilegiando uma espécie de ataque aos valores da sociedade como um meio de chegar ao poder. Outro ponto de preocupação pode ser um suposto meio de se infiltrar em manifestações culturais artísticas para manipular a cabeça das pessoas".
Assim, a difusão do termo estaria relacionada à crença de que, em certo momento da história do marxismo, houve uma mudança de enfoque.
"Eles acreditam que antes os marxistas práticos privilegiavam a conquista do poder político. Para eles, em certo momento, marxistas passaram a se preocupar com o poder das mentes".
• E Antonio Gramsci com isso?
Marco Aurélio avalia que vários usuários do termo "marxismo cultural" atribuem a Antonio Gramsci (1891-1937) a mudança de foco no marxismo. Gramsci foi um filósofo marxista italiano, além de político, autor da teoria da hegemonia cultural, que define que o Estado não serve somente como um instrumento de força, como definiam outros marxistas, mas sim que contém a capacidade de consenso e coerção da população, para assim manter as forças dominantes.
Apesar de ser o primeiro filósofo marxista a apontar a cultura como uma forma de reproduzir a hegemonia na sociedade, Daniela Mussi afirma que o conceito de "marxismo cultural" como forma de estratégia política nunca é citada em seus trabalhos. "O uso de 'marxismo cultural' faz parte da crença de que existiria algum tipo de conspiração política no marxismo. Isso é, de certa forma, contraditório com alguns dos princípios teóricos do marxismo que levam em conta justamente aspectos não só culturais, mas também econômicos e materiais".
Ela avalia que Gramsci antecipa tais questões. "Ele tinha esse pensamento arejado, não dogmático, em relação à questão da vida social... mas a partir de um certo ponto aquilo que era mais progressivo dentro do marxismo ocidental se voltou contra o próprio pensamento."
• Por que "marxismo cultural" é debatido hoje?
O uso do termo atualmente é "imediatamente político", avalia Daniela Mussi. "Para não esclarecer onde se quer chegar, qual a visão de cultura, disputa de valores e ideias, a fim de não ter que justificar nada disso, cria-se um espantalho, um inimigo simbólico, que acaba autorizando todo tipo de discurso".
Marco Aurélio é convergente em sua análise. "Os que falam em 'marxismo cultural' querem introduzir na agenda um elemento diversionista para tirar do centro das atenções o que realmente importa. Toda a atitude deles tem essa pretensão. Cria-se uma força para a esquerda que nunca existiu aqui no Brasil, uma força demoníaca além do razoável. Ao invés de apresentar ideias, limitam-se a ficar criticando as ideias dos outros".
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