- Valor Econômico
O governo deve sinalizar imediatamente ao mercado que atuará como comprador de última instância
Para enfrentar os impactos sanitários, econômicos e sociais da crise do coronavírus (covid-19), as autoridades governamentais brasileiras terão de lidar com um cenário de guerra sanitária e economia de guerra. Com o país já praticamente em lockdown, a paralisação da demanda de bens e serviços provocará uma contração brutal da renda agregada, o aumento massivo do desemprego dos trabalhadores formais e informais e uma situação de penúria destes últimos e da população pobre.
Com tamanha contração ou mesmo interrupção dos fluxos de caixa da maioria das empresas, necessita-se de contínua coordenação entre as políticas monetária e fiscal, mas é a política fiscal que deve comandar a política econômica. Será preciso atuar em várias frentes conjuntamente, e todas implicarão aumento de gastos públicos, dos déficits fiscais e da relação dívida/PIB.
Nesse cenário extremo, não faz sentido pensar que aumentos de gastos governamentais acarretarão incerteza quanto à solvência da dívida pública. Maior incerteza haverá se o governo brasileiro não sinalizar, de imediato, que evitará a quebradeira generalizada de empresas e a destruição de produto potencial no Brasil. Será preciso atuar em diversas frentes, o que exigirá forte coordenação entre as diversas esferas governamentais, já que o maior problema será colocar em prática as medidas para mitigar os efeitos do terremoto em curso. O desafio será fazer o dinheiro chegar rapidamente às famílias e empresas afetadas.
A primeira frente é direcionar os recursos públicos necessários para os serviços de saúde funcionarem eficientemente, evitando que entrem em colapso. As prioridades são salvar vidas humanas, minimizar a taxa de mortalidade do grupo mais vulnerável e assegurar o fornecimento de equipamentos médicos à rede do SUS e hospitais privados.
A segunda é assegurar transferência de renda mínima para os grupos mais vulneráveis da população, como os já cadastrados no Bolsa Família e a maioria dos trabalhadores informais que ficarão desempregados durante o tempo de confinamento. Esses recursos deverão ser bancados temporariamente pelo Tesouro.
A terceira é evitar o total estrangulamento dos fluxos de caixa das empresas, visando descartar um efeito cascata que levaria à interrupção dos pagamentos de todos os tipos de dívida, colocando em risco a solvência do sistema bancário. Nessa crise da covid-19, em princípio não faria muito sentido o governo ampliar gastos para recompor demanda perdida, porque empresas e trabalhadores ficarão temporariamente sob lockdown.
No entanto, como já estamos no “momento Minsky”, a partir do qual quedas expressivas dos preços dos ativos e colapso significativo da demanda e dos fluxos de produção colocarão boa parte do sistema produtivo sob risco de falência, o governo deve sinalizar imediatamente ao mercado que atuará como comprador de última instância (big government), única saída para eliminar o risco de uma Grande Depressão, como insistiu Hyman Minsky, em seu clássico “Stabilizing an Unstable Economy” (Yale University Press, 1986).
Para oxigenar o setor real da economia, o governo deverá suspender a cobrança de impostos indiretos e assumir a garantia das dívidas ou a compra de dívida corporativa, privilegiando as micro, pequenas e médias empresas, que enfrentarão maior asfixia em seus fluxos de caixa. O Tesouro pode também atuar como demandante de última instância em setores em que possa haver mobilização controlada da mão de obra (por exemplo, limpeza, higienização das cidades, construção de hospitais provisórios de campanha etc).
Quando as medidas de distanciamento social forem relaxadas e a economia voltar a operar em condições de normalidade, o governo deveria assumir, definitivamente, o protagonismo dos investimentos em infraestrutura pública, a fim de promover uma recuperação mais rápida e sustentável. Isso exigiria a substituição da Emenda do Teto de Gastos por uma estratégia de ajuste fiscal de longo prazo que não comprometesse gastos mínimos do governo (como proporção do PIB) em infraestrutura.
A última frente é a sinalização de que o governo irá oferecer linhas de crédito para capital de giro para que as empresas, mesmo sob a pressão imposta pelo lockdown, continuem a manter um nível mínimo de produção. Nesses momentos é que se percebe a importância de o Brasil contar com bancos públicos, diferentemente de muitos países desenvolvidos, cujos bancos centrais não têm outra opção senão comprar títulos do Tesouro (ou seja, imprimir dinheiro) para cumprir tal função.
O BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica devem suspender os serviços das dívidas já contraídas, trocar a folha de pagamentos de salários por recebíveis das empresas paralisadas e manter linhas abertas de capital de giro, com taxas de juros subsidiadas, por um período provisório de seis meses, prorrogáveis até que o sistema bancário privado deixe para trás a compressão de liquidez e retome o ritmo normal de suas linhas de financiamento.
No entanto, se houver reincidência do surto epidêmico e o período de confinamento social for estendido por muito tempo, será preciso que a União crie dívida pública adicional mediante a venda de títulos ao setor privado e, em casos extremos, ao próprio Banco Central do Brasil - o que requererá mudanças provisórias na Lei de Responsabilidade Fiscal, até que a situação de economia de guerra tenha sido totalmente dissipada.
Numa economia de guerra, se for preciso que, nestes casos extremos, a dívida pública seja financiada por emissão monetária (uma forma alternativa de helicopter money), não faz sentido conjecturar sobre inexistente risco de default governamental. A escolha recairá entre aumentar temporariamente - e não permanentemente, que fique bem claro -, a dívida pública em pontos de percentagem do PIB que poderá alcançar dois dígitos, ou aceitar o colapso econômico e o caos social generalizado, como já sentenciara Minsky no livro mencionado.
Tamanho esforço de “guerra” implicará avanço substancial dos déficits fiscais e da relação dívida/PIB. Entretanto, ao deixar claro para a sociedade e para os agentes econômicos em geral que esse desvio temporário da “responsabilidade fiscal” é o custo de oportunidade que todos deverão pagar para evitar uma completa deterioração do aparato produtivo e do tecido social, as autoridades econômicas brasileiras estarão contribuindo, paradoxalmente, para se antecipar à confiança que deverá ser reconstruída mais adiante para que alguma perspectiva de retomada possa ser vislumbrada em um futuro incerto.
*André Nassif é doutor em Economia pela UFRJ e professor associado do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense.
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