- O Estado de S.Paulo
Precisamos deles para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade
Um dos muitos encantos de ler Javier Cercas, o autor de Soldados de Salamina e de Anatomia de um Instante, reside na sua consciente mistura de ficção e História, imaginação e política, alimentando-se mutuamente e dando-nos, como compensação, a certeza de que o mundo não é um conjunto de fatos de fácil catalogação. A matéria de Cercas é a Espanha, amada e amarga, como a definiu certa vez o marxista italiano Pietro Ingrao, com sua história atribulada, repleta de violência, golpes e revoluções, e sua democracia tantas vezes interrompida, o que certamente a traz para bem perto de nós.
A ferocidade da guerra civil de 1936, contudo, não tem paralelo possível na nossa própria vida política. Aqui, o putsch de 1935 foi episódio cruento, doloroso, mas circunscrito, sem a fúria das paixões desatadas em torno da República espanhola, verdadeiro ensaio geral para o grande conflito que viria a seguir. E a Espanha, mergulhada na longa noite do franquismo, só em meados dos anos 1970, ainda antes de nós, é que se libertaria do regime do garrote vil e restabeleceria a liberdade perdida no fim dos anos 1930, quando o nazismo e o fascismo pareciam vitoriosos, impondo-se mediante a violência e o irracionalismo tornado ideologia de massas.
O instante cuja anatomia Cercas empreende tem um simbolismo a toda prova. Como em toda jovem democracia, o golpe costuma estar à espreita. No início da década de 1980, chefes militares essencialmente franquistas, não convertidos à ideia fundamental da obediência ao poder civil, encontravam terreno fértil para maquinações. O terrorismo ameaçava a integridade nacional. O princípio da tutela militar sobre as instituições voltava a se insinuar, ameaçando fazer a Espanha retroceder muitas casas no tabuleiro das democracias modernas.
Como consta na generalidade dos manuais de golpe, até hoje e em toda parte, a sedução de um gesto “heroico” empolgava corações e mentes de patentes inferiores. E a invasão do Parlamento, em fevereiro de 1981, pareceu dar vazão a tal instinto predatório. Os parlamentares, vistos com desconfiança por parte grande da opinião pública, como é comum na crise das democracias, foram de fato sequestrados. Entre os poucos que desafiaram as balas dos fuzis, Adolfo Suárez, o primeiro-ministro sob pressão, e Santiago Carrillo, deputado comunista, dirigente do seu partido, lendário inimigo público número um do franquismo.
Este, o instante fixado, prenhe de significados, aberto a múltiplas interpretações. Suárez e Carrillo, o delfim do franquismo e o veterano comunista, tinham sido paradoxalmente, nos anos anteriores, grandes artífices da redemocratização do seu país, a ponto de terem seus destinos políticos associados para sempre, até mesmo no declínio dos anos subsequentes. Na bela expressão de Hans Magnus Enzensberger, que Javier Cercas invoca a propósito dos dois políticos, eles eram heróis da retirada, um tipo de personagem extremamente rico, denso e, em muitos contextos, insubstituível. Ao “se imolarem” metaforicamente, e arrastarem consigo as ideias de toda uma vida, ainda por cima vividas coletivamente, esses heróis permitem que desponte um futuro que, no entanto, não os abrigará.
Detenhamo-nos neste ponto. Lugar-comum entre estrategistas a noção de que uma retirada em ordem é manobra que exige rara inteligência tática. Ela poupa armas e homens, permite uma rearticulação de forças, possibilita alguma contraofensiva. Na política, o herói da retirada é mais do que isso. A manobra, aqui, é mais radical. Ao retirar-se, o herói “desconstrói” os próprios valores sobre os quais desenhara seu percurso, assim como o de todo um grupo social. Não se trata, porém, de ato niilista que provoca perda de referências, mas de percepção do esvaziamento das antigas orientações em face de nova configuração do mundo. Um ato do mais puro realismo, portanto, que parte da constatação de que determinadas percepções subjetivas e categorias de pensamento viraram pó diante do juízo severo da realidade.
Suárez, criatura do franquismo, toma consciência da sua caducidade. Carrillo, combatente antifascista desde sempre, sabe que o leninismo dos PCs não faz nenhum sentido em democracias modernas. No contexto da transição, direita e esquerda, se quisessem contribuir para a nova democracia, deveriam renovar-se de alto a baixo. E só heróis da retirada têm consciência dos próprios limites ideológicos, uma consciência que se manifesta em cada um dos seus atos. No instante decisivo podem até ser aniquilados, mas só eles se empenham em dissolver antagonismos esclerosados e, ao menos, apontar o caminho das pedras.
Já admitimos que a carga de dramaticidade que nos envolveu no passado e agora nos envolve é bem menor. Golpistas não faltam, até em posição de mando, mas não há guerra civil nem fascismos invencíveis à vista. Mesmo assim, precisamos daquele tipo particular de heróis – por ora, e com urgência, terão de vir da direita moderada, civil e militar, para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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