terça-feira, 20 de outubro de 2020

*Raimundo Santos, um homem e suas obsessões - Luiz Sérgio Henriques

Ao nos deixar no dia 19 de outubro deste infausto 2020, Raimundo Santos, intelectual discreto e operoso, extremamente fiel aos seus temas de eleição e às convicções de toda uma vida, deixa um legado precioso de coerência, generosidade e solidariedade. Ele era um daqueles intelectuais que se juntaram na revista Presença, nos anos 1980, aferrados ao patrimônio “eurocomunista” à brasileira. Homens e mulheres diferentes entre si, com variada inserção na vida política e acadêmica, mas reunidos pelo empenho de indagar como é que o seu peculiar comunismo podia servir ao País, como é que se poria a serviço da grande causa democrática, sem se perder em discussões doutrinárias tão ao gosto de muitas correntes do próprio marxismo.

 Tendo estudado Ciência Política na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e se doutorado na Unam (Universidade Nacional Autônoma do México) ainda nos tempos do exílio, Raimundo por quase dez anos seria professor da Universidade Federal da Paraíba (em Campina Grande), transferindo-se depois para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especificamente para o CPDA (Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade).

No CPDA, a sala do Raimundo, atulhada de livros e papéis de todo tipo – ele que, entre outras coisas, se autointitulava um “revisteiro” e era um dos principais responsáveis pela revista Estudos Sociedade & Agricultura –, a sala do Raimundo, dizia, tinha na parede um retrato de Ivan Ribeiro, precocemente falecido com o ministro Marcos Freire em desastre de aviação. Ivan, outro professor do CPDA como ele, outro singular comunista como todos nós. Havia naquele retrato do Ivan, pendurado na salinha do Raimundo, um sentido altíssimo de continuidade e de fidelidade, que se impunha de modo forte, mas silencioso e sem afetação.

O velho Partidão havia passado e era preciso aceitar este fato. Organismos históricos nascem, vivem e num certo momento perdem a razão de ser. No entanto, para Raimundo o pecebismo sobrevivia ao partido e devia continuar de pé, inspirando a ideia da centralidade da política, a necessidade vital de fazer política; e o objetivo só poderia ser o de levar a esquerda, ou a nossa parte da esquerda, a sair de guetos minoritários e a participar plenamente da vida nacional, influenciando-a no sentido semelhante àquele apontado, décadas a fio, por Caio Prado Jr. – a nacionalização da economia e da sociedade, a internalização dos centros decisórios, o atendimento das carências da maioria da população. Tudo isso num contexto de reformas graduais e incessantes, a serem conduzidas dentro da legalidade e da ordem constitucional, fora das quais, para Raimundo, pode até haver salvadores da pátria, mas nunca salvação nem risorgimento nacional. (O lema gramsciano, aqui, não é casual.)

Caio Prado, uma obsessão de Raimundo. O agrarismo reformista do PCB, outra. Inúmeras vezes, em artigos e ensaios, Raimundo debruçou-se sobre o sindicalismo rural estimulado pelos comunistas do pré-1964, valorizando-o como o caminho real para mudanças profundas, mais até do que o choque frontal e muitas vezes violento em torno da propriedade da terra. E o pecebismo do querido amigo se revelava inteiramente na ênfase que atribuía à estratégia da resistência democrática no pós-1964, derivada do “Manifesto de Março” de 1958: uma estratégia avessa às armas e aos grandes gestos, nada épica nem grandiosa, enganosamente miúda, mas que conduziria à derrota do regime militar, à anistia ampla, geral e irrestrita, bem como à Constituição de 1988. Não duvido, aliás, que Raimundo soubesse de cor seções e parágrafos daquele “Manifesto”, uma verdadeira carta de alforria do stalinismo e um marco na transição de um “partido-igreja” para um partido da política, o que a seu ver era o feito memorável do Partidão.

Esta terceira e fundamental obsessão de Raimundo – a frente democrática contra a ditadura – o fazia homenagear, em conversas, palestras e livros, personalidades como Luiz Inácio Maranhão Filho, Marco Antônio Coelho e Armênio Guedes, este último seu companheiro no exílio chileno até que viesse o golpe de 1973. Em Luiz Maranhão, o “cardeal” do PCB, Raimundo exaltava a capacidade de diálogo com os católicos e até com as figuras mais altas da hierarquia, como D. Paulo e D. Eugênio; e nos outros dois dirigentes, a capacidade de entender a política e de elaborar, sempre e invariavelmente, “a tática das soluções positivas” mais adequada para as situações difíceis. Afinal de contas – era o que Raimundo dava a entender com deliberada ironia –, ideias e intelectuais, livros e professores é que haviam derrotado a ditadura, deixando-a esgotada num canto do ringue.

Nesta hora particularmente dura, o discreto Raimundo vai fazer muita falta. Já está fazendo. Lembro-me agora, ao pensar na sua figura e no seu modo de ser, do herói de Vianinha no Rasga, coração. O herói anti-herói: obstinado, constante, modesto. Vem ainda à memória um velho poema de Brecht segundo o qual era de lamentar que os comunistas, lutando por um mundo em que triunfasse a amizade, nem sempre tivessem tido tempo de serem amigos entre si, endurecidos como estavam pela luta de classes. Este não foi o caso do Raimundo: fez e deixou amigos que dele se envaidecem e se recordam com carinho. Eu tive, muitos tivemos a sorte de encontrar o Raimundo nos meandros “do Partido” – um homem honrado, um intelectual decente, uma personalidade democrática, profundamente democrática. Não o esqueceremos.

*Entre outros títulos, Raimundo Santos escreveu: A primeira renovação pecebista. Reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB – 1956/1957 (Oficina de Livros, 1988); O pecebismo inconcluso. Escritos sobre ideias políticas (UFRRJ, 1992); Modernização e política (Forense Universitária, 1996); Caio Prado Jr. na cultura política brasileira (Faperj/Mauad, 2001); O marxismo político de Armênio Guedes (FAP/Contraponto, 2012).

7 comentários:

Xadrez Opinião disse...

Uma bela homenagem para um sujeito ímpar.
E essa tradição vai se perdendo.
O que nos diz Raimundo Santos: avancemos, mas não percamos nossa tradição.

Xadrez Opinião disse...
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Hélio de Lena Júnior disse...
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Hélio de Lena Júnior disse...
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PSCPDA disse...
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Ruth disse...

Linda e justa a homenagem ao grande Mestre que já está nos fazendo falta... será muito difícil atravessar essa conjuntura política sem uma interlocução com Raimundo.

O texto nos deixa algumas pistas de suas inspirações... digo, nos releva os caminhos que norteavam o pensamento de Raimundo e que nos ajuda a pensar e agir no campo da política. Como um Mestre, nos ensinou a pensar!

Eterna saudade do amigo fiel, generoso, gentil e, acima de tudo, portador de uma visão grandiosa da humanidade e da poesia da vida. Era amante da letra de João Cabral de Melo Neto, e tinha o hábito de reler, em todo mês de janeiro, o livro "Angústia" de Graciliano Ramos. Suas inspirações literárias alargavam sua percepção da política de forma preciosa. Raimundo vivia a política de forma amorosa 24 hs por dia... sua responsabilidade, coerência e vigilância com a democracia chegava a me comover... um grande homem, um amigo gigante, um escutador e buscador que me deixa com sensação de orfandade. Que ele esteja em paz, porque aqui entre nós ele foi o maior pacifista que tive o privilégio de conhecer como amiga e eterna estudante. Obrigada pelo texto! Rurh Vasconcelos.

Ruth Vasconcelos disse...

Linda e justa a homenagem ao grande Mestre que já nos faz falta...

O texto nos deixa algumas pistas de suas inspirações... e nos convoca a continuarmos trilhando a vigorosa tradição política que Raimundo representou, com grande responsabilidade. Como um Mestre, nos ensinou a pensar!

Eterna saudade do amigo fiel, generoso, gentil e, acima de tudo, portador de uma visão grandiosa da humanidade e da poesia da vida. Era amante da letra de João Cabral de Melo Neto, e tinha o hábito de reler, em todo mês de janeiro, o livro "Angústia" de Graciliano Ramos. Suas inspirações literárias alargavam sua percepção da política de forma preciosa e extraordinária.

Raimundo vivia a política de forma amorosa 24 hs por dia... sua responsabilidade, coerência e vigilância com a democracia chegava a me comover... um grande homem, um amigo gigante, um escutador e buscador que me deixa com a sensação de orfandade. Que ele esteja em paz, porque aqui entre nós ele foi o maior pacifista que tive o privilégio de conhecer como amiga e eterna estudante.

Obrigada pelo belo texto!

Ruth Vasconcelos.