O Globo (01/01/2022)
Muito provavelmente o Brasil será
governado a partir de janeiro de 2023 por um político de 77 anos, um veterano
que àquela altura terá participado diretamente de seis campanhas presidenciais
e indiretamente de outras três. Um homem de seu tempo, que amadureceu e se
renovou ao longo dos anos, mas ainda assim um fruto da guerra fria, do bem
contra o mal. Do vermelho contra o azul. Um ser binário. Quando tomar posse,
Lula terá 41 anos a mais do que o chileno Gabriel Boric, presidente eleito do
Chile, com quem se reunirá em cúpulas e encontros bilaterais. Ambos são de
esquerda e guardam outras muitas semelhanças a despeito do abismo etário que os
separa.
Aos 35 anos, não se pode dizer que
Boric seja o mais moderno dos políticos. Não é. Trata-se de um jovem da sua
época com sinais externos visíveis. Me refiro às tatuagens do novo presidente.
Apesar de não ser necessariamente uma novidade, a tatuagem remonta três mil
anos de história, ela representa rebeldia e transgressão. Pode ainda significar
coragem. Mas também pode não ser nada disso. O fato é que a tatuagem hoje está
cada vez mais marcada na pele dos jovens. Desafio um leitor a me dizer que não
tem pelo menos um parente muito próximo tatuado. Ele tem, e é jovem.
Mas, para lá da tatuagem, as novas gerações que aos poucos vão tomando o poder têm tudo para mudar velhos paradigmas. Talvez em razão da revolução tecnológica e das comunicações, o fato é que a distância que hoje separa os avós de seus netos nunca foi tão grande. Na política, contudo, o que vemos sempre é mais do mesmo. Vamos aos exemplos clássicos. Qual a diferença entre Tancredo Neves e seu neto Aécio Neves, fora o fato do segundo ter colocado a mão na botija? Nenhuma. O neto fez e faz política como seu avô fazia, sem obviamente a habilidade do ancestral. Aécio é um político tão velho quanto Tancredo. Há outros exemplos, como o de ACM e Neto, ou os filhos e netos de tantos outros políticos pelo país adentro.
Ex-líder estudantil, Gabriel Boric
representa a juventude no poder. Teoricamente, seria um revolucionário na pauta
política. Mas, antes mesmo de assumir, o presidente eleito já deu sinais que governará
com diálogo e com todos os chilenos. Uma excelente avant-première, afinal
o que um país dividido mais precisa é união em busca de um futuro melhor para
todos. Com certeza não é o que dele esperavam os estudantes que nos últimos
anos paralisaram o Chile em manifestações gigantescas de inconformismo e
indignação e que agora se irritam com a súbita moderação do ex-líder. De
qualquer forma, o novo presidente chileno assume com uma Constituinte em curso
que deve mudar a cara do seu país. Constituinte que a sua turma ajudou a
levantar.
Diálogo para construir sua candidatura
é também o que Lula busca no Brasil. E aqui mais uma semelhança entre Lula e
Boric. A deputada Luiza Erundina e o presidente do seu partido (PSOL), Juliano
Medeiros, criticaram esta semana as alianças com o centro que o ex-presidente
começa a articular. Juliano disse que é um erro assinar qualquer acordo com
Alckmin, Erundina acha que Lula não deve fazer alianças políticas “a qualquer
preço”. Juliano, que tem 38 anos, pensa como Erundina, de 87 anos.
Em países como Brasil, Chile e outros
tantos da América Latina e da África, os homens públicos talvez não evoluam bem
porque os problemas que enfrentam hoje são os mesmos de 50 anos atrás. Aqui na
pátria amada a questão é que, em boa medida, eles são parcialmente responsáveis
por isso, uma vez que fazem da política um instrumento pessoal ou de grupo, do
seu grupo. Desviam verbas que deveriam ir para educação, saúde, segurança
pública e infraestrutura, sendo que em alguns casos até de maneira legal,
através das famosas emendas parlamentares.
Mas, não importa a idade do político.
O que se espera dele é que esteja disposto a dialogar e trabalhar para a
construção de um mundo novo para as novas gerações. Não é exigir muito. E
lembre-se que no final quem elege os políticos é você, sou eu. Neste ano que
começa hoje podemos mudar um pouco mais o Brasil, para melhor. A chance é
grande, porque não há mais o que piorar por aqui.
Feliz 2022!
DE BEM COM O ALEMÃO
O embaixador da Alemanha no Brasil, Heiko
Thoms, é um admirador confesso de Lula. Em conversas com outros diplomatas
estrangeiros em Brasília costuma elogiar o conhecimento que Lula tem da
política alemã, ao ponto de ser capaz de passar duas horas conversando sobre o
assunto, segundo ele. O embaixador explica, a quem perguntar sobre a recente
visita do ex-presidente a seu país, que Merkel não o recebeu por questões de
protocolo. Um chanceler não pode receber candidatos, só por isso, diz Thoms.
PODE ESPERAR?
A federação de esquerda para as eleições
deste ano pode não sair. Partidos pequenos têm desacordos com o PT nos estados.
Lula está tranquilo, diz que pode esperar. Será? Tem gente na campanha que
acha melhor resolver logo no primeiro turno, para evitar surpresas.
ÊXODO
Depois da debandada de parte dos olavetes,
a base “autêntica” de Bolsonaro começa a dar sinais de fadiga em outros cantos.
É importante observar o significado dos elogios a Sergio Moro feitos pelos
bolsonaristas de carteirinha Luciano Hang e Janaína Paschoal. São dois
personagens claramente de direita, tanto no plano econômico como na pauta de
costumes. Você pode até chamá-los de atrasados, mas não pode negar
que são inteligentes. Hang construiu um negócio bilionário, e Janaína foi a
deputada mais votada da História do país. E eles já sentiram como o vento está
soprando. E daí, por que não deixar um pé em cada galho?
ÊXODO, PARTE 2
Até o Centrão prematuramente já fala
no desgaste que Bolsonaro pode causar em candidaturas suas nos
estados. Por ora, a bronca é do PL contra o discurso antivacina do presidente,
mas vai piorar.
VITRINES
A boa série “Assassinato do primeiro-ministro”
mostra em cinco episódios como foi a morte de Olof Palme, em fevereiro de 1986,
então chefe de estado da Suécia. Palme, um político de centro-esquerda foi
morto com um tiro disparado por um conservador de direita sem qualquer
trajetória política. Além da incompetência da mal preparada polícia sueca, a
série revela um detalhe curioso que pode ser contado aqui sem perigo
de spoiler. O único perigo é me chamarem de machista. O detalhe é que
Palme só morreu porque atravessou a rua a pedido da sua mulher, Lisbeth, que
queria ver uma vitrine do outro lado. Do lado em que passava o assassino
armado. Lisbeth também foi baleada pelo atirador, mas de raspão.
SERVIDOR EXTINTO
O governo federal gasta, anualmente, R$ 8,2
bilhões para manter mais de 69 mil servidores ativos que ocupam cargos já
extintos, como ascensoristas, datilógrafos e técnicos de manutenção de
videotape. Entre 2014 e 2015, o governo contratou afinadores de
instrumentos musicais e datilógrafos. Apesar de tais cargos terem sido
extintos em 2019, os servidores permanecerão na folha de pagamento pelos
próximos 53 anos. Ainda existem servidores ativos que ocupam cargos de
açougueiro, chaveiro, encadernador e operador de Telex.
SERVIDOR SEM AVAL
Hoje, cada servidor público representa um
compromisso financeiro para o contribuinte que dura, em média, 59 anos: 28 anos
de serviço, 20 anos de aposentadoria e 11 anos de pensão. O tempo médio de
atuação de um servidor no Executivo civil federal é de 28 anos. Muitos desses
servidores chegam ao topo da carreira em dez anos e não são mais
submetidos a qualquer avaliação. Atualmente, há cerca de 76 mil servidores
nessa situação, que passarão aproximadamente dois terços de suas carreiras sem
qualquer medição de desempenho.
SERVIDOR FOLGADO
Cerca de 133 mil servidores federais têm
direito a 45 dias de férias por ano. Vinte estados ainda concedem
licença-prêmio para seus servidores. A cada cinco anos trabalhados, os
servidores adquirem o direito de ficar três meses sem trabalhar, mas
recebendo normalmente seus vencimentos. Por que? Não sei. Nove estados
brasileiros tiveram mais de 60% das despesas comprometidas apenas com o
pagamento dos servidores em 2019.
SERVIDOR BEM PAGO
A folha de pagamento do Executivo federal
com servidores civis ativos aumentou 146% em 12 anos, passando de R$
45 bilhões em 2008 para R$ 110 bilhões em 2020. A inflação acumulada no período
foi de 104%. Estabilidade não pode ser confundida com autorização para não
trabalhar. A proposta de reforma administrativa mamão com açúcar não retira
nenhum direito dos atuais servidores. E eles ameaçam entrar em greve por
aumento salarial.
APERITIVO
Ficou num plano secundário o item “bebidas alcoólicas” na denúncia do TCU de que o Ministério da Defesa desviou recursos da Covid para abastecer suas geladeiras. Afinal, numa época em que o quilo de carne de segunda chegou a R$ 50, o lead tinha que ser mesmo as compras de filé e picanha. Mas, sem qualquer pingo de moralismo cristão, quem já almoçou em cassinos de oficiais, em gabinetes de alto comando ou a convite de generais comandantes de tropas sabe como eles gostam de um uisquezinho para abrir o apetite.
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