sábado, 11 de junho de 2022

Pablo Ortellado: Guerras culturais chegam ao IBGE

O Globo

A Justiça do Acre determinou que o IBGE inclua no Censo questões sobre identidade de gênero e orientação sexual. O IBGE respondeu que recorrerá e que, se a decisão de incluir as questões for mantida, terá de adiar mais uma vez o Censo (já adiado em 2020 por causa da pandemia e em 2021 devido à falta de orçamento). O embate jurídico mostra a chegada das guerras culturais ao IBGE.

A inclusão de questões sobre identidade de gênero e orientação sexual é muito carregada politicamente. O termo “gênero” é visto por conservadores cristãos como uma espécie de cavalo de troia criado pelas feministas para destruir a família convencional.

A discussão sobre a adequação do uso da expressão “gênero” nas políticas públicas explodiu em 2014, quando o termo teve de ser retirado do Plano Nacional de Educação. Depois, esteve no centro de controvérsias educacionais promovidas pelo movimento Escola sem Partido. Noutros países, o debate tem marcado vários momentos políticos. Na Colômbia, o uso do termo “gênero” em passagens do acordo de paz com as Farc em 2016 é considerado um dos motivos por que o referendo em apoio ao entendimento foi rejeitado pelos eleitores.

A controvérsia sobre o termo “gênero” começou em conferências das Nações Unidas nos anos 1990. Feministas que participavam desses encontros resolveram substituir o termo “sexo”, usado em geral para se referir às diferenças entre homens e mulheres, por “gênero”, que enfatizava o caráter construído socialmente no lugar do biológico. Com a mudança, as feministas queriam ressaltar que as relações de opressão dos homens sobre as mulheres não eram determinadas pela biologia, mas pela sociedade e, portanto, poderiam ser socialmente desconstruídas.

Grupos conservadores ligados à Igreja Católica que acompanhavam as conferências interpretaram a substituição de uma maneira conspiratória. Para eles, a mudança de terminologia era uma manobra sofisticada para embutir nos documentos a ideia de que a identidade de gênero e a orientação sexual eram construções sociais — e de que, portanto, homens poderiam virar mulheres e vice-versa ou qualquer um poderia simplesmente escolher ser homossexual. A “ideologia de gênero”, na expressão dos conservadores, seria um cavalo de troia por meio do qual uma mudança de terminologia aparentemente banal trazia a destruição do conceito de família tradicional. Desde então, conservadores e progressistas se engalfinham sobre o uso do termo “gênero”.

O juiz do Acre que, por solicitação do Ministério Público, determinou a inclusão no Censo de questões sobre identidade de gênero e orientação sexual provavelmente estava preocupado com a injustiça e opressão envolvendo relações entre homens e mulheres. E provavelmente supôs que um IBGE sob gestão Bolsonaro bloqueia a coleta desse tipo de informação, fundamental para a elaboração de políticas públicas em apoio às mulheres e à população LGBTQIA+.

O IBGE, no entanto, afirmou em nota que o Censo não é uma pesquisa adequada para investigar essas questões porque um morador deve responder por ele e pelos demais residentes do domicílio, e questões sobre identidade de gênero e orientação sexual são muito sensíveis, só poderiam ser adequadamente respondidas pelo próprio indivíduo. A ponderação do IBGE é pertinente.

O instituto acabou de divulgar a Pesquisa Nacional de Saúde, testando metodologia internacional para medir com algum rigor a orientação sexual dos brasileiros (o estudo estimou a população homossexual e bissexual em 1,8%). A pesquisa gerou algum debate entre especialistas e provavelmente precisa ser aprimorada.

Para que algo assim entrasse no Censo, seria necessária a consolidação da metodologia. Isso levaria anos, além de demandar uma implementação precedida por testes e pilotos. Seria preciso avaliar também o impacto da mudança para não interromper a série histórica dos dados. Isso tudo não pode ser feito adequadamente antes de agosto, quando o Censo começa a ser aplicado.

Embora fosse de esperar que o IBGE sob o governo Bolsonaro dificultasse a coleta de informações para medir problemas envolvendo populações marginalizadas, as limitações atuais do Censo se explicam mais por razões orçamentárias e metodológicas que por interferência política com viés ideológico. A resposta do instituto à Justiça de que adiaria a aplicação do Censo em um ano se obrigado a incluir as questões demonstra a seriedade e o rigor de seu trabalho. 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

1,8% de homossexual e bissexual,então tá! Sabemos que o ser humano é potencialmente bissexual,principalmente as mulheres,a percentagem só pode ser outra.