O Globo
Quando formam-se alianças, a democracia se fortalece, e esse é o sentido da Carta contra as ameaças autoritárias que rondam as eleições
Há um momento em que notas de grupos viram
manifestos de alianças. Muda a natureza do movimento. Foi o que aconteceu nos
últimos dias. A Carta às Brasileiras e aos Brasileiros remete a um símbolo
forte do passado e une pessoas diferentes entre si sob uma bandeira comum. As
mesmas arcadas do Direito da USP que ouviram Goffredo da Silva Telles Jr.
ouvirão Celso de Mello na defesa da democracia. Empresários, banqueiros,
intelectuais, profissionais de diversas áreas se uniram num manifesto que na
sexta-feira já ultrapassava 400 mil assinaturas. Outros documentos estão sendo
preparados. A sociedade civil fez muito pelo fim da ditadura militar com atos
como esses.
Só subestima o que está acontecendo quem não conhece a História ou não valoriza a força da democracia. Jair Bolsonaro diz que não entendeu as cartas pró-democracia e emendou: “Estão com medo do quê?” É difícil para o presidente entender o que seja um movimento de defesa da democracia. Ele não entende disso. E não é exatamente medo o que move os subscritores, é a certeza de que Bolsonaro representa um risco para as instituições do país.
As eleições são o importante momento de
escolha entre os projetos políticos diferentes, mas, explica a Carta, “ao invés
de uma festa cívica, estamos passando por um momento de extremo perigo para a
normalidade democrática, riscos às instituições da República e insinuações de
desacato das eleições”, diz o texto.
O governo passou três anos e sete meses
ameaçando a democracia, as eleições, e insinuando ter submetido as Forças
Armadas e os policiais ao seu projeto. Quis amedrontar o país. Nos últimos
dias, Bolsonaro escalou, chamando embaixadores e deixando implícito que
contestaria até a realização das eleições. “Não podemos realizar eleições sob o
manto da desconfiança”, disse. A carta democrática responde que “sob o manto da
Constituição Federal de 1988 passamos por eleições livres e periódicas”.
Bolsonaro divide o país convocando seus seguidores a ocuparem as ruas numa data
de todos, sequestrando o bicentenário, como os militares fizeram com o
sesquicentenário, em 1972. A Carta responde que “nossa consciência cívica é
muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar de
lado as divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem
democrática”.
Há momentos marcantes na luta contra a
ditadura militar. E os protagonistas nem sempre eram progressistas. O professor
Goffredo da Silva Telles era um conservador, assim como tantos outros que
resistiram ao governo de opressão comandado pelos generais após o golpe de
1964. Ao invocar o “território livre” do Direito da USP — mesma expressão usada
no documento atual — o jurista criou um momento histórico no qual se inspiram
hoje os redatores da nova carta.
A Fiesp por muito tempo sustentou a
ditadura militar em troca dos muitos benefícios dados aos industriais. O pior
dessa relação entre capital e militares foi o financiamento da repressão, na
tétrica Operação Bandeirantes. Mas houve um momento em que empresários do porte
de Antônio Ermírio de Moraes se rebelaram. Agora, de novo, a Fiesp e movimentos
sindicais se unem em um manifesto. Até do mercado financeiro têm saído adesões
aos documentos contra os ataques de Bolsonaro.
A resposta do governo foi dizer que fez o
Pix e isso tirou dinheiro dos banqueiros. Nem uma coisa nem outra. O sistema de
pagamento instantâneo começou a ser criado por técnicos do Banco Central antes
do governo Bolsonaro e os bancos exploraram novas formas de negócio. Hoje ainda
é muito fácil encontrar eleitores de Jair Bolsonaro no mercado financeiro. Os
banqueiros que assinaram o manifesto são líderes no mundo das finanças e estão
antenados com o que é relevante para os grandes investidores: estabilidade
institucional e proteção ao meio ambiente. Hoje os stakeholders dos grandes
fundos de investimento não aceitam alocar seus recursos em países que atacam
liberdade, direitos humanos e promovem a devastação.
Movimentos que no passado ajudaram a enfraquecer a ditadura são capazes de definir eleições? Não. O professor Goffredo, em 1977, registrou a diferença entre o poder da força e o poder da persuasão. O que a atual aliança tenta é aumentar a força da persuasão e mandar o aviso aos democratas para que estejam alertas nos próximos meses, quando aumentará o ataque ao nosso pacto político de 1988.
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