sábado, 13 de agosto de 2022

Demétrio Magnoli* - Esqueçam o que falei

Folha de S. Paulo

Lula não dirá a frase proibida, pois o papa jamais se equivoca

"Esqueçam o que escrevi". A suposta frase de FHC, parte do folclore político nacional, ganha agora uma versão lulista implícita. "Esqueçam o que falei" —eis a mensagem veiculada por Lula em eventos de campanha de seus aliados na frente amplíssima contra Bolsonaro. A militância de esquerda resiste a ela, pois aprendeu uma lição diferente.

Alckmin já se acostumou às vaias da galera, que só cessam quando Lula começa a discursar. Danilo Cabral (PSB), candidato ao governo de Pernambuco, ouviu os apupos, até ser resgatado por um abraço do candidato presidencial. A hostilidade estende-se a diversos estados, notadamente o Amazonas, onde o PT apoia Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD), respectivamente para o governo e o Senado, e Mato Grosso, onde o PT alinhou-se ao ruralista Neri Geller (PP), que almeja o Senado.

Num passado mais remoto, antes e durante seus governos, Lula ensinou à militância que a corrente de centro-esquerda do PSDB (isso existiu!), organizada ao redor de FHC e Serra, reunia malvados "neoliberais". A lição era o alicerce da estratégia de poder lulista, na qual também cabia a formação de uma base parlamentar fisiológica com a centro-direita.

Num passado mais recente, marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff, Lula ensinou que todos, exceto o PT e seus satélites, deviam ser classificados como "golpistas" e (claro!) "neoliberais". O discurso adaptava-se à estratégia de resistência destinada a agrupar as tropas da esquerda num bastião ideológico inexpugnável.

Hoje, Lula deve lançar tudo o que disse à proverbial "lata de lixo da História" –sem, contudo, incorrer no pecado de uma revisão explícita. Na estratégia da frente amplíssima cabe todo mundo, exceto os fieis bolsonaristas dos dias derradeiros. O inimigo do passado converte-se no camarada de campanha do presente. A militância precisa desistir de seus candidatos do coração e distribuir o panfleto do aliado "golpista". Queima o que adoraste, adora o que queimaste!

A costura da frente sem limites é um gesto de sabedoria política. Seu objetivo inicial é encerrar a fatura no primeiro turno, evitando a disputa binária, com seus (mínimos) riscos eleitorais e suas (perigosas) ameaças institucionais. O objetivo mais amplo é construir uma maioria governista capaz de restaurar a normalidade democrática.

Há 20 anos, Lula chegou ao Planalto no tapete mágico de uma democracia funcional. O cenário atual é diametralmente oposto. Para governar, será indispensável cumprir três tarefas prévias: a) secar as fontes da anarquia bolsonarista nos quartéis, indicando um civil para o Ministério da Defesa; b) recuperar a prerrogativa do Executivo de gerir o orçamento público, dissolvendo o "orçamento secreto"; c) redirecionar a atividade política para o Congresso, despolitizando o STF, a PGR e o Ministério Público.

Nada disso será possível com o suporte exclusivo da frente de esquerda – ou seja, por meio da aliança exclusivista PT-PSOL-PCdoB. O tríplice trabalho de Hércules exige um extenso consenso nacional: o pacto "com o diabo e a avó do diabo", na frase célebre do socialista alemão August Bebel. A militância, porém, insiste nas narrativas da caverna, que assimilou como artigos sagrados de fé ideológica.

A desconexão entre os atos (de Lula) e as palavras (da militância) esparrama-se pelas inquietas redes sociais. Nelas, o militante típico insulta eleitores indecisos e oscilantes seguidores de Ciro Gomes, responsabilizando-os por "crimes" inafiançáveis como o impeachment de Dilma ou o triunfo de Bolsonaro. Por essa via, desenrola-se uma campanha eleitoral paralela que, sabotando a campanha oficial, realimenta o antipetismo.

"Esqueçam o que falei". Lula não dirá a frase proibida, pois o papa jamais se equivoca. A campanha dúplice seguirá até o final. Para sorte do PT, o adversário é Bolsonaro.

*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

3 comentários:

Anônimo disse...

Situações e momentos diferentes exigem estratégias diferentes! Lula foi mudando ao longo do tempo, como todos nós... Espero que ele esteja mais político (no bom sentido) e menos petista (no mau sentido, aquele de ser a verdadeira e única alternativa correta)!

ADEMAR AMANCIO disse...

A corrente-petista,que as vezes é chata mesmo,não tem nada a ver com o Lula,que já disse até sentir saudade das piadas politicamente incorretas.

Jorge disse...

Vamos despolarizar! O Brasil não merece um segundo governo de Bolsonaro, da mesma forma que não merece a volta de Lula! Precisamos de um governo sem radicalismos, seja de direita ou de esquerda. O que presenciamos hoje é o império das mentiras. Defendo a mudança já! Não precisamos do sujo, nem do mal lavado! Nem do rôto, nem do esfarrapado! As propostas de crescimento com base no aumento do endividamento, iniciadas por Lula, agora têm continuidade com Bolsonaro, com os empréstimos consignados do Auxílio Brasil! É repugnante! Muda Brasil!