O Estado de S. Paulo
A causa democrática só pode existir quando,
primeiro, é elaborada em palavras e, depois, é traduzida em ações. Hoje
testemunharemos mais uma prova disso.
No dia 11 de agosto de 1827, Dom Pedro I
sancionou e promulgou a lei que criou os cursos jurídicos no Brasil. No ano
seguinte nasceram duas escolas, uma em São Paulo, no Largo de São Francisco, e
outra em Olinda. Mais tarde, a primeira delas passou a integrar a Universidade
de São Paulo (USP), fundada em 1934. Naquela época, a “velha academia”, como os
estudantes gostam de chamá-la, já era uma instituição centenária, orgulhosa de
seu papel determinante na luta pela abolição e na luta pela República. Dentro da
USP, suas tradições nunca se diluíram e sua personalidade jamais se esmaeceu.
Tanto melhor. Seu Centro Acadêmico, criado em 1903 com o nome óbvio de XI de
Agosto, é ainda hoje uma das entidades estudantis de maior projeção no País.
Nenhuma outra encarnou com tanta legitimidade e tanta substância a causa
democrática.
Ora, a causa democrática só pode existir quando, primeiro, é elaborada em palavras e, depois, é traduzida em ações – necessariamente nessa ordem. No dia de hoje, 11 de agosto, testemunharemos mais uma prova disso. No Largo de São Francisco e em várias outras faculdades de Direito do Brasil teremos atos públicos em defesa do Estado Democrático de Direito, que vem sendo fustigado pelo presidente da República e seus seguidores, armados ou não. Quem puxa o movimento é a Carta às brasileiras e brasileiros, que foi escrita por antigos alunos e já conta com a assinatura de mais de 800 mil pessoas. Ou seja, quem puxa é a palavra.
O texto tem o mérito insubstituível de ser
impessoal e apartidário. Logo em seu início, homenageia uma carta anterior, que
foi lida pelo professor Goffredo da Silva Telles Jr., em 1977, no pátio da
Faculdade. Na década de 70, as Arcadas se levantaram contra a ditadura militar,
num discurso que mudou o curso dos acontecimentos. Agora, as Arcadas enfrentam
os golpistas e as vivandeiras tardias, que espalham mentiras sobre as urnas
eletrônicas. As duas cartas são, sem nenhum recurso de retórica, a mesma voz.
Só a palavra pode agir nas horas críticas
como a que vivemos. A palavra, e só ela, imprime significação aos gestos
coletivos. Em toda parte do Brasil, surgem abaixo-assinados – muito mais do que
“cartinhas”, como tentou desdenhar um infeliz – para defender as garantias
democráticas, num sinal claro de que ainda somos uma sociedade de palavra. Até
mesmo a Academia Paulista de Letras, numa iniciativa inédita e, em boa medida,
surpreendente, publicou o seu “manifesto em defesa da democracia”, em que
adverte: “A sociedade, anestesiada pela crise em todos os níveis, tem de
despertar e exercer seus direitos de cidadania”. Entidades de patrões e de
trabalhadores se unem para subscrever os mesmos pronunciamentos. A palavra toma
a frente. A palavra contra a violência. A letra contra a bala. O livro contra
as armas. A palavra contra a sordidez dos que não têm palavra.
Vem também disso o enorme peso simbólico da
data de 11 de agosto. Trabalhar com leis é trabalhar com a palavra e com sua
efetividade. O ordenamento jurídico se faz apenas de palavras – imagens e
teatralidades não resolvem nada. A justiça, ideal aristotélico da política, se
expressa em palavras antes de se materializar em fato. Sabendo disso, o cuidado
que devemos tomar – seguindo o que disse Goffredo em 1977 – é “não confundir
mais o legal com o legítimo”. O mestre nos ensinou pelo exemplo: o exemplo da
palavra. Com ele a gente aprendeu a empenhar a palavra na busca da justiça, a
argumentar com a palavra, a pensar na palavra, a dialogar por meio da palavra (pois
não há outro meio), a unir pela palavra e, com a palavra, vencer.
Olhando em volta, é possível pressentir que
algo melhorou neste país, onde tanta coisa piorou. A universidade está melhor.
Em 1964, quando veio o golpe de primeiro de abril, congregações de faculdades
deram seu apoio aos tanques. Em 1968, quando sobreveio o recrudescimento da
repressão política, houve catedráticos que se voluntariaram em redigir atos
inomináveis e outros que alegaram deixar para lá os tais “pruridos”. Hoje, em
2022, as universidades públicas paulistas se dão as mãos para repudiar o
autoritarismo no dia 11 de agosto. Melhor.
Somos um país com problemas horrorosos,
basta ver o descalabro político, mas, quando olhamos para a consciência cívica
que vai se adensando, temos a sensação de que aprendemos com o passado. Sabemos
que o incumbente vai tentar tudo que pode – e, mais ainda, o que não pode –
para não se ver alijado da cadeira em que se aboletou, mas sabemos também que,
com a força da lei justa, o Brasil tem tudo para fazer valer a vontade popular
e garantir eleições livres e soberanas.
Hoje, dia 11 de agosto, teremos gente na
rua pela defesa da democracia. Será bom. Que as manifestações aconteçam em
torno das escolas de Direito é animador, mais do que lógico. De algum modo, a
causa da liberdade, dos direitos humanos e da paz vai abraçando a letra da lei.
Tomara que o exemplo da palavra frutifique e que, a partir de hoje, nenhum
bacharel saia por aí buscando abrigo, de novo, na banda dos torturadores.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
2 comentários:
Enquanto centenas de manifestações de instituições se pronunciam defendendo a Democracia e os valores democráticos, um presidente genocida as menospreza e setores importantes das Forças Armadas marcham criminosamente ao seu lado.
Nem me fale,anônimo.
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