sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Reinaldo Azevedo - PEC da Responsabilidade Orçamentária

Folha de S. Paulo

Com a fascistada à solta, torço para que sensitivos do desastre estejam errados

"Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho". É Machado de Assis em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", no capítulo intitulado justamente "A ideia fixa". O trecho acima é o mais citado, tanto quanto Machado ainda é referência, mas o sentido moral da metáfora se revela na conclusão daquele pequenino texto, e o mesmo farei eu nesta coluneta modesta, posto que, de Machado, não tenho "nem os transes da ventura nem os dons do pensamento".

O governo Lula, a 15 dias ainda da posse, será malsucedido de tantas e tão distintas e combinadas (e descombinadas) maneiras, assegura-se quase unanimemente na imprensa — e com muita ênfase nesta Folha —, que quase não sei como continuar estas mal traçadas sem me afundar na "tinta da melancolia", sem disposição até para a "pena da galhofa" porque não há graça em rir quase sozinho de si mesmo.

O futuro presidente tem um insuspeitado e terrível adversário a ser batido desde já: chama-se Luiz Inácio Lula da Silva, aquele do primeiro mandato, que teve "a coragem" de elevar o superávit primário em 2003 de 3,75% do PIB para 4,25%, realizando tal proeza por meio do corte de despesas, ainda que sacrificando o crescimento, dizia-se. O Belzebu se ajoelhava, então, no altar da ortodoxia, deixando, ele sim, a "esquerda perplexa e a direita indignada".

No dia 21 de agosto de 2003, o jamais suficientemente lembrado Otavio Frias Filho, diretor de redação, então, deste jornal, escreveu: "O espectro ideológico, no Brasil e no mundo, só tem se deslocado para a direita. Os mercados exercem um poder de tutela e chantagem sem precedentes sobre os governos. A geração de Lula chegou ao poder depois de anos de ostracismo; adapta-se rapidamente às rotinas e conveniências de um governo bem-comportado. Mudar para que e por quê?".

Nestes 20 anos, o tal espectro se deslocou, em muitas áreas, para a extrema-direita, e "tutela e chantagem" deixaram de ser instrumentos de pressão política para se transformar em uma "doxa". Resistir ao que se apresenta como uma verdade natural ou faz do divergente um dinossauro ou um esquisito que anda de escafandro no deserto.

Esta Folha chama a PEC da Transição de "PEC da gastança" — sem as aspas, e não restaria, pois, a menor dúvida de que se estaria a tratar de algo objetivo, como a sustentar, sem contradita possível, que "O Natal é no dia 25 de dezembro". Convenham: se o sujeito insiste em que é no dia 26, deve estar ruim da cabeça, reivindicando o direito a ter seu próprio calendário. Ou, então, põe-se todo dia de joelhos, rezando com a cabeça voltada para a Unicamp...

Eu chamava a natimorta (enquanto escrevo) de "PEC da Responsabilidade Orçamentária", com aspas, mesmo havendo na expressão mais do que solipsismo aritmético. Dos R$ 145 bilhões reivindicados, R$ 70 bilhões vão compor o Bolsa Família. À Saúde, a despeito da fila do SUS, reservam-se, no ano que vem, R$ 16,6 bilhões a menos do que neste 2022, com o programa Farmácia Popular à míngua; à Educação, que não paga residentes e deixa as universidades sem ar, sem luz, sem razão, um decréscimo de mais de R$ 4 bilhões. Para o Minha Casa Minha Vida, sobraram espetaculares R$ 34 milhões...

O senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator-geral do Orçamento, está refazendo as dotações, mas li em algum lugar que isso seria parte de uma estratégia para pintar o capiroto mais feio do que ele realmente seria, de modo a justificar, então, a gastança, a festança, a lambança, a "papança" (cortesia do "Dicionário de Rimas", de Costa Lima). Mas sempre se pode contar com Arthur Lira, não é mesmo? Parece que será seu o triunfo em favor de ideias magras e severas sobre... papança.

Com a fascistada à solta e dado o esforço que noto aqui e ali de normalizar os inimigos da sociedade aberta como se constituíssem parte aceitável do espectro ideológico, torço para que os sensitivos do desastre estejam errados. Saberemos. E, então, de volta a Machado. A ideia fixa é uma "bandeira grande". E ele nota: "Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?". Quem não sabe?


4 comentários:

Anônimo disse...

Repetindo a repetição, pois algumas verdades não mudam, embora possam piorar:
"Os mercados exercem um poder de tutela e chantagem sem precedentes sobre os governos."

Anônimo disse...

O mal que a ideia fixa de que cloroquina não funciona fez ao Brasil é incrível. Esta ideia fixa fez com que o remédio (que talvez salvasse centenas de milhares de vida) não fosse distribuído à exaustão entre a população!!!!
Aviso que é uma ironia. É cansativo ver pessoas sem nenhuma base discordar de saberes científicos. Chamar de ideia fixa um resultado científico ou igualar qualquer narrativa como correta é o fim da picada. Não havíamos concordado que deveríamos ouvir a ciência? A ciência efetiva, não algum maluco por aí (como muitos médicos defenderam a cloroquina). O que o Brasil fez para que linhas teóricas obscurantistas e muito marginais da ciência econômica nos demais países se tornassem tão importantes por aqui? O descalabro fiscal vai nos dar novamente muita crise, muita inflação e muita miséria e fome (o custo social é absurdo). A queda de 10% do PIB em 15/16 não foi suficiente? Quem gerou um resultado deste pode voltar ao governo? Triste país.

Anônimo disse...

A ideia de que a CLOROQUINA NÃO FUNCIONA NA COVID não foi uma ideia fixa e nem surgiu no Brasil! No início da pandemia havia algumas evidências e principalmente suposições que a cloroquina poderia funcionar e ser útil. Com o passar dos meses, tais evidências e SUPOSIÇÕES foram ficando mais fracas e sendo descartadas por todo o mundo.
No segundo ano da pandemia, a própria OMS e o FDA dos EUA abandonaram definitivamente qualquer esperança de que ela funcionasse, enquanto apenas o DESgoverno Bolsonaro e principalmente o GENOCIDA insistiam em acreditar em alguma suposta eficiência dela.
Trump, que pregava o uso da cloroquina nos EUA, contrariando seus próprios assessores médicos, quando pegou Covid NÃO USOU a cloroquina que propagandeava para os estadunidenses!
Distribuir a cloroquina para a população foi feito por muitos médicos INCOMPETENTES e dezenas de municípios, SEM QUALQUER resultado proveitoso, e causando muitos casos de efeitos colaterais indesejáveis, especialmente em pacientes cardíacos ou que tinham este tipo de problema ainda não diagnosticado. Em mais ampla escala, os efeitos da cloroquina SERIAM AINDA MAIS NEGATIVOS! Todas as associações de especialistas rejeitaram o uso da cloroquina, seguindo as evidências científicas mundiais que foram se ACUMULANDO contra o uso dela na pandemia!
Realmente é cansativo ver pessoas sem qualquer base (como o GENOCIDA e o anônimo acima) discordarem do saber científico que foi se acumulando contra o uso da cloroquina durante meses e meses após o início da pandemia!

ADEMAR AMANCIO disse...

Minha colega morreu porque ficou em casa tomando cloroquina,quando foi hospitalizada era tarde.