Correio Braziliense
Em 2003, no primeiro ano do governo Lula, o
Ministério da Educação construiu um labirinto para mostrar as dificuldades no
dia a dia de uma pessoa que não sabe ler. Dentro de uma grande caixa, o
labirinto armado em diferentes locais permitia ao visitante seguir o percurso
de uma pessoa analfabeta em busca de um endereço onde havia possibilidade de
emprego. Ao ver a placa onde a palavra "entrada" onde estava escrita
com letras misturadas, "ntearad", o visitante tinha seu primeiro
choque de incompreensão que sente o analfabeto diante de texto escrito e do
fato de que reunir letras só forma palavra para alfabetizados. Alguns diziam
ter passado por isso durante dias no estrangeiro e imaginava como seria viver
permanentemente assim.
A partir da entrada, grupos de visitantes eram reunidos na primeira sala, escura, onde um alto-falante dizia: "Você está em busca de chegar a um endereço onde há empregos disponíveis. Escolha o ônibus que sirva para seu destino." A voz silenciava e uma luz mostrava na parede em frente o fluxo de ônibus chegando, com letras misturadas indicando o rumo para onde seguiam.
Depois da perplexidade, o grupo caminhava à
sala seguinte, onde a voz dizia: "Parabéns, você teve coragem para
perguntar qual era o ônibus ao destino que busca, e sorte para encontrar pessoa
gentil que lhe indicou o veículo certo. Agora que você chegou aonde desejava,
basta encontrar a rua". Nesse momento, a luz focava as placas com os
respectivos nomes, todos com letras e símbolos misturados.
A voz insistia: "Se você sabe o nome
da rua para onde quer ir, basta ler o nome escrito. Se não lembra, basta ler o
papel onde sua amiga escreveu o endereço". A luz iluminava um pedaço de
caderno com palavras escritas em símbolos misturados. Era possível sentir a
tensão dos visitantes. Muitos percebiam que soltar não é libertar, o livre
precisa do direito de se locomover e também de ler o mapa para onde quer ir.
Na sala seguinte, a voz dizia:
"Imagino o quanto você está cansado. Descanse um pouco. Se tem dor de
cabeça, leia "farmácia" e peça um remédio. A luz ilumina a caixa e a
bula de um remédio escritas em símbolos. O visitante imagina a sensação de
tomar uma droga sem saber se é aquela de que precisa.
Na outra sala, a voz dizia: "Parabéns
pela persistência e esforço, você chegou. O emprego o espera. Basta ler um
pequeno trecho em que vão testar seu conhecimento". A luz mostra um texto
simples com letras misturadas. Percebe-se que a viagem foi improdutiva, ali não
há emprego para quem não sabe ler. Entra-se na última sala, onde a voz diz:
"Não desista. Você é brasileiro, deixe seu depoimento sobre como foi o seu
dia".
Em frente, uma imensa impressão digital na
parede. Ao lado, bandeiras do Brasil na qual o lema "ordem e
progresso" está escrito com letras misturadas ou em idioma estrangeiro.
Porque, diferentemente de quase todas as outras no mundo, nossa bandeira foi
criada em 1889, com o lema "Ordem e Progresso" escrito, mesmo
sabendo-se que 90% dos brasileiros adultos de então eram analfabetos. Hoje, 134
anos depois, essa proporção caiu, mas o número absoluto cresceu para 10 milhões
a 12 milhões, que ainda hoje pensam estar diante da nossa bandeira, mesmo que o
lema esteja "rj#? ???Zqwls??k", ou "order and progress", ou
"educação é progresso".
A porta abria e o visitante era tomado por
sentimentos de raiva e vergonha, alguns com os olhos lacrimejando. A sensação é
de imoralidade social: percebe-se que o analfabeto é torturado durante todo o
tempo em que está acordado. O analfabetismo é como um chicote incansável
maltratando o cérebro de quem não sabe ler. Por isso, a erradicação do
analfabetismo de adultos é uma questão de direitos humanos.
Mas, historicamente, salvo raros esforços
isolados, o Ministério da Educação tem se dedicado muito mais ao ensino
superior, deixando para cada município o papel de promotor do fundamental
direito humano à alfabetização: ao ensino superior recursos e esforços nacionais,
à alfabetização recursos e esforços locais. Tanto que o labirinto do
analfabetismo só durou o primeiro ano da gestão do presidente Lula.
É como se a Abolição da Escravatura tivesse
sido deixada sob a vontade, a responsabilidade e os recursos dos municípios,
esperando por 5.570 Leis Áureas, quando cada prefeito desejasse. Felizmente,
não se fez assim com a escravidão, nem com a tortura, mas é feito com o
analfabetismo. Essa espécie de tortura-simultânea-à-escravidão, em pleno século
21, afeta milhões de brasileiros e compromete o Brasil inteiro em seu
labirinto.
*Professor emérito da UnB
4 comentários:
O professor Cristovam sempre nos dá uma brilhante aula com cada texto. Neste, não foi diferente. Parabéns ao colunista e ao blog que nos divulga o estupendo trabalho do autor!
Muito bom o artigo.
Podemos ser Analfabeto mas você não passa de um canalha idiota.
Grande aula de imbecil
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