O Globo
O mesmo governo que faz um resgate do país
em tantas áreas cria brigas desnecessárias e prejudiciais na economia
A morte ou a vida. Em algumas áreas, só com uma categoria dramática assim se pode definir a travessia entre os dois mundos que o Brasil fez em um mês e meio. Pense nas crianças Yanomami, se achar que exagero. Pense na invasão da sede dos Três Poderes e no pacto democrático feito após o atentado. Pense que o Ibama hoje está no comando do combate ao crime ambiental, a Funai acolhe os indígenas, o Brasil restabeleceu o diálogo com o mundo. Por tudo o que mudou, o ruído econômico soa mais estridente. O mesmo governo que faz um resgate do país em tantas áreas cria brigas desnecessárias e prejudiciais na economia.
O inimigo não é a autonomia do Banco Central,
não é a meta de inflação, não é nem mesmo a taxa de juros. Ela está alta, sim,
como na maior parte do tempo no Brasil. A presidente Dilma deixou a Selic em
14,25%, mais elevada do que a atual. No governo dela, a taxa chegou a cair para
7,25% e depois o Banco Central foi obrigado a subi-la para enfrentar a escalada
da inflação. Na gestão de Ilan Goldfajn no BC, houve 12 quedas consecutivas, e
o governo de Michel Temer terminou com a Selic em 6,5%. Em março de 2003, no
começo do primeiro governo Lula, as taxas de juros foram elevadas para 26,5%.
Tudo é bem mais complicado do que parece no debate que o governo iniciou.
O principal inimigo econômico do projeto de
um governo que quer resgatar os miseráveis é a inflação. Sempre ela, a que
empobrece os pobres. O governo Bolsonaro entregou a inflação de alimentos duas
vezes maior do que o IPCA. Ele escolheu baratear combustíveis fósseis, zerando
os impostos federais, e impondo aos estados uma perda de receita do ICMS. Isso
está tirando R$ 100 bilhões dos cofres públicos ao ano. É um problema grave e
será difícil sair dessa armadilha. Vai elevar a inflação e provocar reações da
classe média. Mas um governo que quer combater a pobreza não pode concordar que
se entregue R$ 100 bilhões para os donos de carros encherem seus tanques.
Os economistas e petistas que estão dizendo
que o país não tem risco fiscal, teve superávit primário em 2022 e reduziu a
dívida pública, teriam que, por coerência, aplaudir o ex-ministro Paulo Guedes.
Eu não aplaudiria, porque acho evidente que o superávit do ano passado tem
artificialismos. Precatórios foram rolados, dividendos das estatais foram
antecipados, parte do aumento de arrecadação se deveu à inflação que passou
vários meses em dois dígitos e despesas indispensáveis foram comprimidas. O
país cresceu em 2022 mais do que o previsto pelos estímulos eleitoreiros dados
pelo governo Bolsonaro. Quem neutralizou esse populismo econômico e fiscal foi
o Banco Central, elevando a taxa de juros de 2% para 13,75%. É desejável que a
Selic caia, porque está alta e porque há uma desaceleração da economia, mas o
espalhafato gerado pelo governo em torno do Banco Central só criou incertezas.
O presidente Lula e o PT criaram uma agenda
prejudicial ao seu próprio governo e da pior forma. Lula dispara frases que
alimentam a incerteza. Como o Brasil viveu quatro anos tentando interpretar
frases dúbias, Lula deveria ser objetivo. Se quer mudar a meta de inflação,
acabar com o sistema de metas, revogar a autonomia do Banco Central, deve
apresentar seus projetos e o país discutirá sobre fatos concretos.
Toda a energia deveria estar concentrada em
enfrentar o garimpo nas terras Yanomami, Munduruku, Kayapó e tantas mais. Em
estabelecer o caminho da lei e da decência no mercado de ouro. Em aumentar a
taxa de vacinação, em encontrar a maneira de recuperar a educação do desastre
dos últimos quatro anos, em recuperar o respeito aos direitos humanos. Nas
tantas tarefas urgentes.
O governo Lula tem feito uma enorme
diferença em inúmeras áreas do país nestes 45 dias. Pense na democracia, se
acha que exagero. O governo anterior conspirava contra a Constituição, escrevia
minutas de golpes que o ministro da Justiça guardava no armário, ameaçava usar
as Forças Armadas contra os poderes da República e insuflava seus seguidores a
quebrar os palácios públicos. O alvo sempre foi a democracia. Por isso, tantas
forças se uniram ao presidente Lula, por isso, tanto apoio internacional.
Diante da colossal tarefa que tem pela frente com o que mesmo o presidente Lula
quer gastar seu capital político inicial?
3 comentários:
"Como o Brasil viveu 4 anos tentando interpretar frases dúbias, Lula deveria ser objetivo. Se quer mudar a meta de inflação, acabar com o sistema de metas, revogar a autonomia do Banco Central, deve apresentar seus projetos e o país discutirá sobre fatos concretos."
Boa,Miriam!!! Chamando à razão a turma do eterno oba-oba!
Míriam Leitão e sua sensatez.
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