O Globo
Eleito prefeito de sua cidade, ele não
nomeou nenhum parente ou amigo. Foi posto pela esposa de quarentena amorosa
Um leitor interessado na questão há de perguntar: trata-se de uma reflexão ou de uma escolha? No que eu replico: as duas coisas! Porque estou focando um sistema cultural reacionário (contrarreformista, pós-aristocrata, escravista, elitista, mesquinho e autoritário) que, a partir das consequências engendradas pela Revolução Industrial e pelo ambíguo triunfo do liberalismo, funciona por meio de um sistema de classes contratualista, mas continua inevitavelmente enredado numa cadeia de relacionamentos imperativos, definidores irredutíveis de identidade e posicionamento social axiomático, como rezam as nossas sacralizadas certidões de nascimento. Esse “papel” que legalmente nos inaugura e atesta legalmente a nossa origem. Documento “mãe” que informa e legitima nossa entrada como atores neste palco que — como dizia Shakespeare — é a existência.
No caso das sociedades tidas como
homogêneas (em termos de etnia ou aparência física — esses eufemismos para
“raça”), havia o pressuposto segundo o qual a posição numa escala econômica de
“dominação de classe” predominava, alienando o universo humano dos laços
sociais. O inverso seria o caso dos sistemas subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento, como o brasileiro.
Num sistema moderno e plenamente
capitalista, as normas impessoais do mundo público (economia + política +
Estado + religião civil) teriam — na vida pública — predominância sobre os
laços de família, compadrio e amizade. Vale dizer, conforme propôs Henry Sumner
Maine no livro “Ancient Law”, em 1861 — e eu furtei em a “A casa & a rua”
em 1985 —, que as relações consagradas no espaço social da família, com origem
na morada, canibalizavam cargos e éticas, exigidas pelo aparato do “Estado” e
da cidadania, o universo da rua.
O caso de Pedro Honorato é emblemático.
Eleito prefeito de sua cidade, ele — um raro fiel da ética republicana feita de
igualdade, impessoalidade e competência e alerta para o fato de que, como
prefeito, administrava algo que era coletivo e não da sua casa ou partido — não
nomeou nenhum parente ou amigo. Foi imediatamente posto de quarentena amorosa
por sua esposa (dizem que ela queria nomear o irmão como secretário municipal)
— e exprobrado como ingrato, indiferente e mal-agradecido. Para os membros de
sua comunidade, o republicanismo de Pedro Honorato não era virtude, era
insensibilidade, posto que traía os mandamentos não escritos que governavam o
universo das “pessoas” dos que estavam mutuamente ligados por condescendência,
sangue e empenho. O resultado, conforme definiu um dos seus ex-compadres, o
Coronel Furtado, o levou a um isolamento moral (hoje chamado de “cancelamento”)
e à expulsão muda da autocongratulatória consciência festiva das elites locais,
porque Pedro Honorato tornou-se inclassificável. Não seguia o padrão de
apadrinhar amigos em nome de um partido formalmente popular; mas também não
seguia o padrão polarizador inconsciente do “agora somos nós”, dos “donos do
poder” de nomear e enriquecer pela lógica do “toma lá dá cá” à custa do Estado.
Individualizado, morreu sozinho na tal “rua da amargura” de que minha mãe tanto
falava e que tantos bandidos disfarçados de políticos mereciam.
Chamei tais sistemas de “relacionais”
porque neles a filiação, o parentesco e os laços modelados pela reciprocidade
(o circuito do dar para receber) contrastavam com o conjunto de ideais
impessoais que simultaneamente governam o mundo republicano e democrático, mas,
é preciso lembrar, não têm o mesmo valor.
O dilema da competência que pode ser
antipaticamente impessoal tem muitas variantes que a nossa sociologia dialética
ignorou. Nessa questão, cabe explicitar novamente as premissas ou axiomas da
nossa “ética relacional”, que é muito mais forte do que pensa a nossa otimista
ideologia mudancista e polarizadora, pois ela dorme dentro de cada um de nós,
ao passo que o nobre “comunismo”, cristão ou materialista, chega de fora para
dentro e tem a leveza do livro do Milan Kundera repleto desses dilemas entre o
formal da estrutura ideológica e a plasticidade das pessoalidades que
estruturam esse “humano” sempre surpreendente.
Um comentário:
"História de Pedro Honorato, o político honesto" - Estadão, Roberto Da Matta
7 de out. de 2020, tinha mais molho e 'pimenta' que esta versão do Globo
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