quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Maria Cristina Fernandes - Pau que bate em Tarcísio baterá em Lula

Valor Econômico

Modelo de concessões paulista não se distingue daquele que vai reger o PAC

A greve dos transportes em São Paulo foi tratada como uma bofetada no modelo privatista do governador Tarcísio de Freitas. Os pugilistas são da extrema-esquerda, mas partidários do governo Luiz Inácio Lula da Silva vibraram com o que consideraram um emparedamento do seu maior oposicionista.

É causa de tormenta diária o transporte público escasso, lento e lotado de uma cidade em que as pessoas gastam 2,5 horas por dia para se deslocar. Isso não se discute. A dúvida surge quando a greve se volta contra o modelo de gestão do transporte público.

Trata-se de modelo crescentemente concedido à iniciativa privada por longos contratos de 20 anos ou mais. Segue a mesma lógica estabelecida no programa de concessões e Parcerias Público Privadas que acaba de ser lançado pelo governo federal para a reativação do PAC.

Todos se fiam no disposto na lei 11.079 aprovada em 2004 durante o primeiro governo Lula com a decisiva colaboração de Fernando Haddad e da qual o ministro da Fazenda muito se orgulha.

Fala-se que a PPP se distingue da concessão pela abertura a subsídio público para equilíbrio tarifário. E não é que a linha 4 do Metrô paulistano, operada pela CCR, apesar de ser uma concessão, também tem subsídio? É assim que Lula e Tarcísio operam juntos e misturados a concessão a serviços públicos.

É de se esperar que o lançamento dos projetos do PAC-Mobilidade do governo federal desperte o mesmo tipo de indignação nos parlamentares da base lulista que apoiaram a greve nos transportes. Afinal, contra qual das “privatizações” se está falando?

Na noite de terça-feira, acabou por prevalecer o bom senso na assembleia que deliberou pelo encerramento da greve e pela ausência de novas mobilizações na próxima semana. A decisão derrotou a direção sindical.

Ao longo das duas horas em que os sindicalistas falaram na assembleia, ecoou o temor de que os funcionários das estações passem a ser terceirizados.

O medo da CLT não deveria estar restrito a funcionários de empresas públicas paulistas porque também está nas cogitações do governo federal para novas contratações de carreiras transversais, que atendam a diversos ministérios simultaneamente.

A investida contra o Palácio dos Bandeirantes parte do pressuposto de que seu inquilino é um estranho no ninho de um Brasil governado pela esquerda, e não o principal representante da metade de um país que, Lula, a muito custo, conseguiu derrotar.

A extrema-esquerda que comandou a greve parece desconhecer os termos “correlação” e “forças”, como também a expressão formada pela adição de uma preposição. A correlação de forças não é desfavorável apenas porque a eleição de Lula foi apertada. Há muitos eleitores de Jair Bolsonaro e de Tarcísio Freitas que não acreditam na superioridade do serviço privado sobre o público. Ou na subordinação de um a outro, como está prestes a acontecer com a “milicianização” da segurança pública paulista.

A correlação de forças é desfavorável porque o Estado não tem como manter gorduras na prestação do serviço público. E isso não vale só para estatais. Vale também para sucessivos aditivos das concessões e para a captura da regulação dos serviços públicos por interesses privados - no Brasil, em São Paulo e em Cabrobó.

E o sinal de que isso vai ficar cada vez mais evidente vem da metrópole. A destituição do presidente da Câmara dos Estados Unidos, Kevin McCarthy, pela queda de braço que opõe os republicanos ao governo Joe Biden, demonstra que o ciclo de alta de juros nos EUA está longe de acabar. E, com isso, fica mais difícil para emergentes, como o Brasil, captar para se financiar.

Ao contrário do anunciado por Biden, foi ele, e não Lula, quem sugeriu o acordo transnacional contra a precarização do trabalho. Se Biden vai a piquete de greve de montadora em busca de apoio dos sindicatos contra os precarizados que ameaçam se unir novamente contra o trumpismo, Lula vai ter dificuldade de encontrar uma greve em que possa fazer o mesmo após a convalescença.

A Receita ficou a um triz de decretar greve mas foi convencida de que a demanda por bônus não seria uma pauta exatamente popular para uma corporação que já acumula desafetos no Congresso e no empresariado. Empregados da Embraer decretaram greve e foram obrigados a recuar 24 horas depois. Também é difícil imaginar empatia com grevistas da USP. Se fazem barricadas agora, o que farão quando a reforma tributária acabar com o ICMS que os custeia?

O Congresso mostrou alguma sensibilidade em relação às incertezas do futuro ao avançar nos projetos que instituem novas taxações (offshore, fundos exclusivos e JSCP), mas continua na retranca do corporativismo parlamentar com a queda de braço das emendas.

O corporativismo parlamentar e sindical passou ao largo das eleições do domingo para os conselhos tutelares. Em todo o Brasil, se repetiu o quadro de representações equilibradas em áreas de classe média e domínio de fundamentalistas religiosos de extrema-direita na periferia.

A ausência de mobilização acende um sinal amarelo para as bases do lulismo. Se em 2024 esta base tem a pretensão de romper a polarização do país e ganhar terreno para o campo político do presidente da República, a eleição de domingo e as greves em curso são um ponto de alerta.

Enquanto a extrema-esquerda estiver mais ocupada com as prerrogativas de suas categorias do que em defender, do obscurantismo, os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, missão dos conselhos, o bolsonarismo seguirá a cavaleiro, a despeito da destituição do seu titular.

 

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