Folha de S. Paulo
Vamos educar os jovens para que repudiem a tirania, o ódio e o preconceito
Desde 1983, quando caiu a ditadura argentina,
a sociedade civil daquele país celebra um dia nacional da memória pela verdade
e justiça –na data mesma do golpe que introduziu um dos piores regimes de
exceção de nosso continente. Com o tempo, o 24 de Março se firmou como dia de
atividades educacionais e, depois, uma lei o tornou feriado.
Uma reflexão sobre a recente tentativa de
reprisar aqui os anos de chumbo levou nossas entidades a concluir que erramos
ao não educar nossos jovens para o que foi a ditadura, que rima com tortura e
censura. Por isso, lembrando o exemplo argentino, decidimos adotar uma data
anual para educar as pessoas sobre a democracia, em especial as que não
conheceram o regime ditatorial.
A proposta foi lançada pela SBPC em abril, sendo adotada por quase cem entidades, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior e o Conselho Nacional de Institutos Federais de Ciência e Tecnologia. Uma assembleia que realizamos em fins de junho, com a presença de dezenas de entidades, decidiu chamá-la Dia de Luta pela Democracia Brasileira. Finalmente, adotamos como data o dia 5 de outubro, quando foi promulgada a Constituição Federal, a melhor de nossa História, tendo como fundo sonoro as palavras do dr. Ulysses Guimarães: Temos ódio e nojo da ditadura.
Queremos deslanchar um movimento que faça
nossa sociedade assumir os valores da democracia como irrenunciáveis. Queremos
educar crianças e jovens para repudiarem tirania, ódio, preconceito, e
abraçarem a fraternidade, a liberdade, a igualdade de direitos. Para isso, a
ênfase deve estar na educação. Pretendemos firmar, na sociedade, os valores que
servem de base a um convívio justo e fraterno.
Precisamos garantir que nunca mais volte o
horror. Chocou-nos ver multidões pedindo, estes anos, ditadura e intervenção
militar. Vimos que não desenvolvemos os anticorpos necessários para proteger a
planta tenra, que é a democracia, de seus inimigos. Tal trabalho é uma
prioridade nacional.
Em 2022, os que defendem a democracia no
Brasil se uniram, para encerrar o descalabro institucional que substituía a
amizade pelo ódio como base de nossa sociedade. Um valor superior prevaleceu
sobre as diferenças: o da defesa da forma democrática de administrar os
conflitos. Tal união permitiu superar a ditadura, em 1985, e elaborar a melhor
Constituição de nossa história, em 1988. Agora, foi preciso um drama
gigantesco, que custou ao Brasil mais de 500 mil vidas acima da média mundial
de mortes pela Covid, para que as forças que disputaram o poder nas últimas
décadas distinguissem o que é um conflito dentro da democracia daquilo que
ameaça a própria democracia.
Queremos mobilizar a área educacional e
cultural. Educar as crianças pequenas a cooperar, mais do que a disputar, a
firmar alianças mais do que antagonismos. Ensinar às crianças do Fundamental os
valores básicos da ética, do convívio criativo, dos direitos humanos. Formar os
jovens cidadãos do ensino médio, muitos deles já eleitores, para defenderem
suas ideias e interesses pela discussão, pela organização, pelo voto, nunca
pela ofensa e pela agressão.
Queremos recuperar o Brasil vinculado ao
coração, ao afeto, ao acolhimento ao estrangeiro e ao diferente. Anos de
incitação ao ódio puseram em risco nossa alma. O resgate dela é prioridade
nacional. E pensamos que começar nosso empenho pela sociedade, e não pelos
órgãos de Estado, vale a pena. A sociedade brasileira não pode deixar a
política nas mãos do Estado: são os cidadãos, a sociedade, o povo, que devem
vencer o autoritarismo e o preconceito. Pedimos a todos os professores que, no
Dia de Luta, realizem atividades explicando o que é democracia, a base de nosso
futuro.
Professor titular de ética e filosofia
política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); escreve este artigo a
título pessoal
Marcia Abrahão
Presidente da Associação Nacional de Docentes
de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)
Helena Bonciani Nader
Professora da EPM/Unifesp, vice-presidente da
Academia Brasileira de Ciências e membro do Conselho Superior da Fapesp
Professor de economia e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal); secretário-executivo da Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento Brasileiro (ICTPBr
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