O Globo
Depois da tragédia no Rio Grande do Sul,
espera-se que o país comece a agir à luz da realidade
Se o teste definitivo de nosso conhecimento
(individual e coletivo) está em nossa habilidade de transmitir o que sabemos,
das duas uma: ou somos péssimos professores ou alunos impermeáveis. Mudança
climática não é propriamente uma novidade — em seus convulsionados 4,5 bilhões
de anos (indo para outros 5 bilhões até ser absorvida pelo Sol), a Terra
aguentou solavancos ambientais de proporções bíblicas. Ainda assim, ela vai
muito bem. O que vai mal são todas as formas de vida da biosfera, que começa
9,5km abaixo do nível do mar e vai até uma altura de 8km acima da superfície
terrestre — aquilo que costumamos chamar de “mundo”. Este vai de mal a pior
desde que nos apegamos ao conceito de “controle da natureza”, miragem concebida
em arrogante suposição: que a natureza existe para conveniência do ser humano.
— Esquecemos como ser bons hóspedes, como pisar sobre o chão da Terra com a delicadeza comum às demais criaturas — resumiu, com melancolia pouco comum, a economista inglesa Barbara Ward, já citada neste espaço.
Acabou. O sistema climático em que crescemos
e que proporcionou tudo o que entendemos como cultura e civilização está morto.
Para David Wallace-Wells, autor do incontornável “A Terra inabitável — uma
história do futuro”, já estamos vivendo no passado recente. Apenas
aperfeiçoamos a previsão dos desastres, sem mudar radicalmente de rota. E
promessas de governantes vão se dissolvendo no ar — nesse mesmo ar que tanto
faltou aos náufragos do feroz dilúvio a varrer o Rio Grande do
Sul.
De início, o noticiário da devastação no
estado gaúcho condoeu e mobilizou o lado bom samaritano do brasileiro; depois,
assombrou autoridades e estudiosos pela intensidade e extensão da tragédia; por
fim, a ameaça de um colapso das comportas e de outros equipamentos de proteção
de Porto Alegre (população de 1,3 milhão) disparou um alarme diferente até em
quem estava a léguas do Rio Guaíba: a percepção clara de que ninguém está
seguro em caso de “condições extremas” da natureza.
Orgulhosa capital de um dos estados da rica
Região Sul do país, Porto Alegre se viu invadida pelas águas e afundada em
incerteza quanto ao viver dali para a frente. De uma hora para outra, os muros
da cidade, as comportas e rodovias elevadas se mostraram vulneráveis à
inclemência das águas. Mercado público, rodoviária, sede do TRF-4, tudo
invadido pelo rio tão querido dos gaúchos. E, quando acadêmicos em hidrologia,
finalmente ouvidos, recomendaram às autoridades um plano de evacuação em
diversos bairros da cidade, para a eventualidade de “condições extremas”, a
realidade do risco se mostrou por inteiro. A orla fluvial do Rio Guaíba tem
72km de extensão, e na Região Metropolitana da capital vive quase 40% da
população do estado. Ainda assim, sinal dos tempos ou de fim de mundo, difícil
imaginar que algum governante trocasse um ingresso VIP para o show de Madonna por
um assento no gabinete da crise climática. Assim é na biosfera que montamos, e
não tende a melhorar. Com meio milhão de pessoas sem energia elétrica no Rio
Grande do Sul, o ministro de Minas e Energia, Alexandre
Silveira, pelo menos discutiu “transição energética justa e inclusiva” com
o Papa Francisco no Vaticano.
Resta o medo, essa que é a mais primal e
potente dentre as emoções de todo ser humano.
— O medo tem cheiro, da mesma forma que o
amor — garante Margaret Atwood.
O conhecemos desde o nascimento, na batalha
pela primeira lufada de ar, e com ele convivemos em suas muitas variantes até a
hora da despedida. Em sua forma mais natural, ele é a resposta racional e
desejável para a percepção de um perigo iminente — seja para fugir ou enfrentar
algo, ele convida à ação. O medo neurótico conduz à paralisia, profetiza a pior
das possibilidades, segundo o receituário do Dr. Freud, espalha incerteza. Após
a tragédia da semana passada, espera-se que o país comece a agir à luz da realidade.
Não deve ser impossível encontrar uma rota alternativa a nossa soberba — até
porque o único poder capaz disso é, justamente, o ser humano.
2 comentários:
Verdadeiro, excelente! E os bolsonaristas e ruralistas reduziram as áreas de preservação permanente na beira dos rios, e querem diminuir ainda mais!
Verdade,humildade a todos é o que desejo de coração,principalmente a mim.
Postar um comentário