O Estado de S. Paulo
A principal delas é que só a política é capaz de levar o País a superar seus impasses e bloqueios
O aniversário de 30 anos do Plano Real
convida a refletir sobre os fatores que o levaram a ter êxito. Que lições
continuam válidas até hoje?
A primeira delas é que não se pode fazer nada de bom e duradouro em matéria de políticas públicas sem conhecimento especializado. A vontade não substitui o conceito. O Plano Real se beneficiou de um longo amadurecimento da reflexão acadêmica sobre as características próprias do processo inflacionário no Brasil. O departamento de Economia da PUC-Rio foi o principal centro dessa reflexão. Ali nasceu a ideia de levar à indexação ao extremo para debelar a inflação. Passaram-se mais de 15 anos entre o primeiro lampejo – apresentado em um texto para discussão por André Lara Resende – e a concretização da ideia sob a forma engenhosa da URV.
A segunda lição diz respeito à importância de
expressar ideias gerais abstratas na linguagem concreta e específica do
Direito. Sem isso, a formulação de políticas não produz efeitos ou, pior, gera
resultados contrários ao pretendido. Planos anteriores produziram contenciosos
jurídicos que se arrastaram por anos a fio sem decisão final. Sobre a incerteza
jurídica resultante, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan disse uma frase
antológica: “No Brasil, até o passado é imprevisível”.
Na democracia, a boa técnica não prescinde da
boa política. Políticas públicas não se fazem sem saber especializado, mas seu
sucesso depende de liderança, em especial até que se consolidem. Essa é a
terceira lição.
Sem Fernando Henrique Cardoso não teria
havido Plano Real. Ele fez a ligação entre a boa técnica para estabilizar a
economia (e nessa matéria o time da PUC-Rio era então imbatível) e a boa
política. A primeira resistência a vencer foi a dos próprios membros que
formariam a equipe econômica. Faltavam menos de dois anos para o término do
mandato presidencial e Itamar Franco havia trocado três vezes de ministro da
Fazenda em pouco mais de seis meses. As condições políticas para um programa
sério de combate à inflação não estavam dadas, para dizer o mínimo. Fernando
Henrique convenceu os economistas de que era possível criá-las.
Não se faz boa política sem o Congresso. Na
época, as medidas provisórias davam imenso poder ao Executivo. Fernando
Henrique preferiu o caminho mais árduo da negociação com o Legislativo para dar
maior legitimidade política às ações do governo. Negociou exaustivamente, mas
sabendo aonde queria chegar. Desde o início, o combate à inflação veio
acompanhado de uma agenda de políticas para modernizar o Estado e a economia.
Basta ler o texto introdutório ao Programa de Ação Imediata, adotado um mês
após a posse de Fernando Henrique no Ministério da Fazenda, para constatar que,
mais de um ano antes de nascer, o Real já era parte de um programa mais amplo
de reconstrução institucional, que começava pela recuperação da confiança na
moeda.
O senador Fernando Henrique conhecia o
Congresso por dentro, e o respeitava. Intelectual público, sabia da importância
de explicar os porquês das ações da equipe econômica, e confiava na capacidade
da opinião pública de entendê-los. Preferiu o uso público da razão à demagogia
salvacionista. Enfrentou as críticas e a oposição como parte normal e
necessária da democracia. Ironizou, argumentou, esgrimiu, mas jamais ofendeu.
Manteve-se fiel à promessa de nada fazer sem antes avisar à sociedade, e
resistiu às pressões para uma reedição desesperada de mais um choque
heterodoxo. Aceitou a candidatura à Presidência da República por entender que a
sorte do plano, ainda em gestação, dependia da expectativa de sua sustentação
no novo período presidencial que se avizinhava. Tomou a decisão em condições
adversas, quando Lula da Silva aparecia com o dobro de intenções de voto nas
pesquisas eleitorais e ainda não se sabia quando seria possível passar da URV à
nova moeda.
A sociedade e a política mudaram muito nesses
30 anos. A agenda de desafios do País se tornou mais complexa e as condições
para enfrentá-los, mais difíceis. Tínhamos um sistema político mais organizado
e funcional e uma sociedade menos suscetível à intoxicação irracional provocada
pelo uso das mídias sociais para destruir as bases da coexistência democrática
civilizada. Ainda assim, foi árduo e longo o caminho do Real. Ele só se
consolidou quando o seu principal opositor assumiu a Presidência da República, oito
anos depois. E se comprometeu a não engatar marcha à ré.
A História não se repete, mas as lições de 30
anos atrás continuam válidas. A principal delas é que só a política é capaz de
levar o País a superar seus impasses e bloqueios. A política miúda faz parte da
democracia. O irracionalismo intoxicante, o golpismo, não. O espaço da grande
política às vezes se expande, às vezes se contrai. Anda contraído nos últimos
anos. Mas é possível alargá-lo. Na condução do Plano Real e da Presidência da
República, Fernando Henrique elevou a qualidade do jogo democrático no Brasil,
mudou o País de patamar. Ganhamos todos, até os que perderam na ocasião. Por
isso ficará na História, a servir de exemplo.
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