O Globo
Escritor continua moderno depois de os
modernistas terem saído de moda. Não para de surpreender velhos leitores
Em 2023, a Fuvest decidiu deixar na
geladeira, por três anos, os escritores que portassem (ou tivessem portado)
cromossomos Y. O x da questão para estar na lista de autores a ser lidos para o
vestibular não era o gênero literário, mas o biológico. Saíram Carlos Drummond
e Machado de Assis, entre outros, e entraram, entre outras, Djaimilia Pereira
de Almeida e Conceição Evaristo.
Num país onde as escolas tratam a leitura (e a literatura) a pontapé (vide os resultados do Pisa), os livros indicados para o vestibular costumam ser o primeiro contato dos futuros universitários com a obra (ou pelo menos um livro inteiro) de autores fundamentais —caso de Machado e Drummond. (Pausa para um flashback: fui apresentado a Osman Lins e Ivan Ângelo, aos contos de aprendiz de Drummond e ao narrador além-túmulo de Machado nas leituras obrigatórias, em 1976. Obrigado, UFMG!)
Escantear nosso maior escritor não é
privilégio de fundações progressistas ou influenciadores digitais, como Felipe
Neto (“Não entendia direito, era cheio de palavras que eu não sabia o
que significavam. (...). Só fui enxergar a genialidade de Machado aos 33 anos,
quando decidi ler pela terceira vez”). Guimarães Rosa anotou, nos seus diários:
— Não pretendo mais lê-lo, por vários
motivos: acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para “embasbacar o
indígena”; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da
originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua
leitura. (...) Quanto às ideias, nada mais que uma desoladora dissecação do
egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma do egoísmo: o egoísmo dos
introvertidos inteligentes. Bem, basta, chega de Machado de Assis.
O jovem Drummond precisou exorcizá-lo:
— Amo tal escritor patrício do século XIX,
pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu
pensamento. Mas, se considerar que este escritor é um desvio na orientação que
deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais
vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e
indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo.
Mais tarde rendeu-se a ele, num poema: “Todos
os cemitérios se parecem,/e não pousas em nenhum deles, mas onde a
dúvida/apalpa o mármore da verdade, a descobrir/a fenda necessária;/onde o
diabo joga dama com o destino,/estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,/que
revolves em mim tantos enigmas.”
Mulato e inefável, na pele e no estilo, foi
embranquecido por seus contemporâneos (é descrito como branco no atestado de
óbito), e a maré identitária o fez preto retinto. Continua moderno depois de os
modernistas terem saído de moda. Não para de surpreender velhos leitores e de
assombrar os novos. Com a tradução de “Memórias póstumas”, feita por Flora
Thomson-DeVeaux, Machado está, em 2024, na lista dos latino-americanos mais
vendidos na Amazon, ao lado de García Márquez, Jorge Luis Borges, Octavio Paz,
Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa — três deles ganhadores do Nobel de
Literatura, só um nascido antes de ele ter ido estudar a geologia dos campos
santos.
Não convém subestimar os poderes de um bruxo.
Ainda mais se ele já estiver morto há mais de cem anos — e escrevendo cada vez
melhor.
2 comentários:
Faz tempo que não leio Machado.
Rosa devia ter ciúme.
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