Folha de S. Paulo
Se não compreender esse fato, em breve não
terá moral para fazer o seu papel
Sou de uma geração que, ao alcançar a idade
do discernimento moral e do entendimento do mundo, achou-se sob uma ditadura
militar. Uma geração que não apenas viveu boa parte da vida sob um regime
ditatorial, mas cujos pais haviam experimentado duas ditaduras.
Um jovem dos anos 1980 nem sequer conseguia discernir se o país vivia sob um regime democrático frequentemente interrompido por longas ditaduras ou se saltava de ditadura em ditadura com breves intervalos democráticos. Daí o assombro de quase ver a história se repetir em 2023, quando bolsonarismo achou que já era tempo demais de recreio democrático e saiu num domingo de sol para dar um golpe como quem sai para um passeio no parque.
Para a minha geração, portanto, é impossível
não reconhecer o fato de o STF ter se demonstrado
uma instituição capaz de enfrentar com firmeza os arroubos ditatoriais do
pretendente a tirano. Não se trata apenas da reação dura e sem hesitação à
intentona de 8 de janeiro. Refiro-me, sobretudo, aos quatro longos anos em que
Bolsonaro e o bolsonarismo testaram os limites da democracia, capturaram
instituições, sondaram a tolerância da imprensa e, enfim, procuraram brechas na
defesa do STF.
A cada investida, um rechaço, e a cada
rechaço, um discurso histriônico, um vídeo histérico, uma profusão de ameaças
explícitas e nominais. Não é à toa que o juiz Alexandre
de Moraes estava "no caderninho" dos que precisavam ser
removidos à força do caminho.
Além disso, é impossível não admirar os
tantos avanços progressistas que um STF predominantemente esclarecido e
convictamente democrático foi capaz de garantir em seus julgamentos na última
década.
Por isso, vejo com desconforto juízes da
Corte se esforçarem para jogar fora o patrimônio de admiração e apreço
republicanos conquistado ao longo dos anos e consolidado quando a instituição
se atreveu a ser o osso duro de roer em que o bolsonarismo autocrático findou
por quebrar os dentes.
O fato é que há muito tempo juízes da Corte
se comportam como se fossem imprescindíveis intelectuais públicos,
influenciadores ou celebridades da mídia.
A propensão a pontificar sobre polêmicas
públicas, a compulsão por ter que "meter opinião" nas questões
disputadas e nas controvérsias em aberto na sociedade, a semidivina convicção
de que cada juiz carrega em seus ombros o destino político do país e que,
portanto, conduzirá a nação para a felicidade a golpe de pareceres ou de
declarações é definitivamente constrangedora.
A democracia e a imagem do Judiciário
ficariam bem melhores se juízes do STF não fossem "arroz de festa" da
"palpitologia" nacional que inunda o jornalismo e os ambientes
digitais.
Não sei se realmente acham que o país precisa
realmente desse serviço de babá política ou se é apenas ego, mas o fato é que
há outras pessoas para fazer isso. Aliás, o que não falta ao país são
intelectuais e pretendentes a isso, influenciadores e celebridades.
Ultimamente, com os festivais ultramarinos da
inteligência nacional, membros da Corte passaram também a prestar os
inestimáveis serviços de promoção de "think tank activities". No
último desses festivais, conforme a Folha, 160 autoridades do governo, do
Congresso e do Judiciário tiraram uns dias em Lisboa para, com a devida
distância, entender o país. Isso faz sentido?
Um juiz do STF lapida o seu lugar na
história, inclusive na história intelectual do país, sendo juiz. Segurar a
autocracia pelos chifres quando nada mais parece capaz de fazê-lo, escrever
pareceres e súmulas dignas de antologia sobre questões em disputa, manter uma
postura republicana quando o país enlouquece politicamente.
É preciso mais do que isso para entrar na
história? Tem cabimento ser ainda celebridade e fornecedor fácil de aspas para
o jornalismo, torrar a grana pública em diárias e passagens nababescas,
desnecessárias para o exercício do seu ofício, frequentar a elite da política e
da grana em convescotes, tertúlias e festinhas VIP, ou arvorar-se como grandes
intelectuais brasileiros na sua hercúlea tarefa de dirigir a mente nacional?
Republicano é um juiz da Suprema Corte
brilhar no exercício do seu múnus e desaparecer na vida cotidiana do país,
recoberto por modéstia e neutralidade, deixando a política ao povo e aos
políticos, e os papéis de intelectual público, influenciador, celebridade e
agitador cultural a quem fizer disso o seu ofício. Se os nossos juízes não
compreenderem esse fato, em breve não terão moral nem mesmo para fazer o papel
que lhes cabe, e pelo qual tanto os apreciamos.
2 comentários:
Perfeito.
Excelente texto. O papagaio bolsonarista que avoa por este blog e comentou noutras matérias contra Lula deve ter também saído naquele "domingo de sol para dar um golpe como quem sai para um passeio no parque." Junto com seus colegas golpistas, admiradores das ilegalidades da Lava Jato e de todos os crimes praticados pelo DESgoverno do GENOCIDA Bolsonaro, agora indiciado pela PF como muambeiro chique. Onde houver perspectiva de tortura e ditadura militar, os fascistas se encontram, mesmo passeando pelo DF pra destruir o patrimônio público e tentar derrubar um presidente democraticamente eleito!
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