Não houve quem não tenha lido, comentado ou tomado posição. Sinal de que havia ali algo incômodo: uma provocação eficiente, uma verdade finalmente revelada ou a confirmação cabal de algo conhecido, mas que parecia esquecido.
O artigo publicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na revista Interesse Nacional levantou poeira por todos os lados. Pautou o processo político, embora tenha manifestado dificuldade de obter ressonância prática, a começar no terreiro mesmo de seu partido, o PSDB.
A efervescência por ele provocada foi tão intensa que ficou difícil realçar seu núcleo argumentativo. Quem tentou fazer isso foi estigmatizado como apoiador do ex-presidente, tucano enrustido ou antipetista visceral. Alguns foram tachados de prepotentes por quererem ensinar os demais a lerem um texto simples, claro como a luz do sol, que nada mais seria que a confissão do sobejamente conhecido elitismo de FHC.
Isso porque o ex-presidente escreveu que a oposição, se quiser voltar ao centro do palco, precisa dar mais atenção às emergentes classes médias que se descolam do "povão" e parecem estar em busca de quem as represente na política nacional. Foi uma frase contundente, mas muitos leitores, em vez de a interpretarem literalmente - como uma diretriz política e eleitoral -, preferiram desconstruí-la para salientar o propalado "horror de FHC ao povo". Ejetaram o ex-presidente do campo democrático.
Foi desonesto, ainda que politicamente compreensível. Pior foi o que se seguiu. O líder petista Lula, instado a se manifestar, não perdeu a chance de soltar uma sentença que tem tanto de rusticidade quanto de malícia: "O povão é a razão de ser do Brasil". Para emendar, aproximou FHC do ditador João Figueiredo, que "preferia o cheiro de cavalos ao cheiro do povo". Tentou amenizar, observando que não conseguiu "entender o que FHC quis dizer", mas esse acesso de modéstia não diminuiu o peso da grosseria, que evidentemente repercutiu.
A discussão deixou de lado o bê-á-bá. Se um tucano, querendo vencer as próximas eleições, percebe que parte do eleitorado está sob controle do adversário, se percebe que o "povão" está com o PT, por exemplo, a atitude mais inteligente é ir atrás do restante. Essa a tese do artigo. Ao formulá-la, FHC também fez política. Autoelogiou-se, forçou a barra ao atacar a situação, não perdoou sequer seu próprio partido. Com isso atraiu a fúria dos céus. Disse que o PSDB e seus aliados falarão sozinhos se persistirem em disputar com o PT a influência sobre "as massas carentes e pouco informadas", dando margem a que se visse nisso um desprezo por elas. Acrescentou que o PT controla o "povão" porque seus governos "aparelham e cooptam com benesses e recursos", que são mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, permitindo que se o criticasse pela parcialidade, ou seja, por não reconhecer que os governos tucanos também se valem de benesses e cooptação quando gerenciam suas políticas públicas.
Foram frases cortantes, parciais, discutíveis, mas não propriamente falsas. Seu ponto era definir o público-alvo das oposições: todo o vasto segmento social integrado pela classe média, pelas novas classes possuidoras, pelos novos profissionais. Um segmento que, em sua visão, estaria ausente do jogo político-partidário, ainda que viva profundamente conectado nas redes sociais. Se as oposições forem ousadas e buscarem interpelá-lo, encontrarão um eixo e poderão voltar a sorrir. Delineou-se assim um ambicioso "programa" de ação: disputar a hegemonia na política, não somente o controle de recursos de poder. A mensagem deu destaque à retomada da circulação de ideias via rede de palestras, artigos e debates que "mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum". Fixar um público e caprichar na explicitação do conteúdo da mensagem.
Acontece que o público definido pelo ex-presidente é objeto de desejo de todos os políticos: as classes médias, setor sabidamente informe e mal conhecido, cercado de desconfianças políticas e ideológicas, mas predestinado a crescer sempre mais. Inevitável que seja alvo de cobiça e atenção. Tanto que Lula, no vácuo aberto pelo artigo de FHC, não se fez de rogado e propôs aos petistas que façam concessões à direita para minar a prevalência do PSDB em São Paulo. Ir para a direita, nesse dialeto, significaria aliar-se a políticos conservadores e avançar sobre a nova classe média e os "órfãos do malufismo e do quercismo". Linguagem cifrada à parte, Lula copiou FHC.
O diálogo político com a classe média integra toda plataforma democrática e progressista. Promovê-lo não poderia significar "ir para a direita", do mesmo modo que os que estão ao lado do povo não são necessariamente de esquerda. Tanto quanto classe média, "povão" é termo genérico e impreciso. Pode significar o conjunto dos pobres, as massas carentes, os desorganizados ou mesmo aqueles que não têm uma classe definida. Qualquer posição política interessada de fato em construir uma sociedade melhor concebe esse segmento como algo a ser superado, não como objeto a ser conquistado eleitoralmente.
Entre classes, ideologias e votos não existem alinhamentos automáticos. Uma política progressista, de esquerda, que discrimine setores sociais correrá o risco de trair a própria causa, de praticar uma política "social", e não uma política de Estado voltada para a comunidade como um todo. Além do mais, a classe média é um fato da vida e cresce na medida mesma em que se mostram eficazes as políticas sociais destinadas a reduzir a pobreza. O pobre que deixa de ser pobre pode até ser agradecido ao governo que o libertou, mas estará disponível para novas aventuras políticas pelo próprio fato de ter ingressado em outro universo social.
Ao abrir essa discussão, o artigo de Fernando Henrique Cardoso lançou um repto a todos.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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