sábado, 19 de novembro de 2011

Indivíduo x sociedade :: Judith Brito

Cada cidadão nasce sob a égide de um Estado nacional, o Leviatã - nem sempre benevolente. Nas sociedades modernas há um consenso de que o sistema democrático representa não um modelo perfeito de convivência, mas, quem sabe, o menos ruim que os homens conseguem gestar. Não por outra razão a referência global de democracia consolidada, a norte-americana, tratou de cravar em sua Constituição, já em 1791, a Primeira Emenda, que impede qualquer restrição à liberdade de imprensa - um dos pilares indispensáveis das sociedades democráticas.

No Brasil, a Constituição de 1988 consagrou o mesmo princípio. E decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, que revogou a Lei de Imprensa do governo militar, acabou por consolidar de vez a supremacia da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão em geral. Foi uma decisão histórica, sem margem para dúvidas, mas mesmo assim persistem, ainda que residualmente, decisões de juízes proibindo os meios de comunicação de veicularem determinadas informações, o que na prática configura a "censura prévia judicial".

Por essa razão, a Associação Nacional de Jornais tem procurado a interlocução com representantes dos órgãos do Judiciário nos diversos Estados do País, com o objetivo de discutir, de forma aberta e saudável, o espírito da lei. Tais eventos têm permitido que as diferentes visões sejam expostas, como deve ser numa sociedade democrática.

Geralmente as decisões de censura prévia judicial decorrem de pedidos feitos por políticos, por autoridades públicas, que pretendem impedir a divulgação de informações que consideram mentirosas ou ofensivas. Alguns juízes acatam o que pedem esses agentes públicos e determinam que o jornal, a revista ou outro meio de comunicação que esteja de posse das informações seja punido, quase sempre com pesadas multas, caso as divulgue.

Há também os casos de figuras públicas, não necessariamente de autoridades, que, cientes de que determinadas informações que lhes dizem respeito serão veiculadas, batem às portas da Justiça para impedir que isso ocorra. Alegam questões de privacidade, de proteção à sua imagem, etc. Um caso infelizmente notório é o que atingiu este Estadão há mais de dois anos, com o empresário Fernando Sarney pedindo e conseguindo na Justiça (numa decisão solitária de apenas um desembargador...) que o jornal fosse impedido de divulgar informações a seu respeito contidas em investigação da Polícia Federal. Informações que certamente interessam aos cidadãos, aos contribuintes.

Embora o empresário tenha depois desistido da ação com o pedido de censura, o próprio jornal, muito acertadamente, preferiu não aceitar o arquivamento do caso. Afinal, é uma questão de princípio, de defesa do direito de todos à liberdade de expressão, de livre acesso às informações, sem nenhum tipo de amarra prévia. O que se espera, nesse caso específico, é que em algum momento, nas suas mais altas instâncias, o Poder Judiciário decida que nem mesmo juízes podem exercer a censura, em nenhuma situação, sob nenhum tipo de argumento.

Os juízes que impõem a censura prévia argumentam que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não são absolutas e não se podem sobrepor aos direitos individuais, como à imagem e à privacidade. Por essa interpretação, o direito de um indivíduo de se proteger da divulgação de informação que considera mentirosa ou ofensiva antecede o direito geral da sociedade de ter acesso a essa informação.

No entanto, como bem disse o ministro Carlos Ayres Britto quando da decisão do STF em 2009, "não há como garantir a livre manifestação do pensamento (...) senão colocando em estado de momentânea paralisia a inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, como, por exemplo, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra de terceiros".

Como reza o princípio maior da liberdade de expressão consagrado por nossa Constituição, ninguém pode proibir ninguém de dizer o que quer que seja. A contrapartida dessa plena liberdade de expressão é a possibilidade de o divulgador de determinada informação, depois de tornada pública, ser processado e condenado por danos morais, conforme legislação específica. Mas essa possível punição só ocorre caso se prove, na Justiça, que houve violação dos princípios da legislação de danos morais. Não é possível proibir previamente a divulgação das informações, no pressuposto de que poderão ser mentirosas ou caluniosas.

A violação ao princípio constitucional da liberdade de expressão é ainda mais grave quando censura prévia judicial beneficia um agente do Estado. Essas figuras públicas têm status diferenciado diante da sociedade, bem diverso do de outros cidadãos, e precisam, sim, estar sob a permanente vigilância dos meios de comunicação. Gozam, inclusive, de foros de julgamento privilegiados no Poder Judiciário. Por isso, quando um jornal divulga informações a respeito de determinado político sob investigação da Polícia Federal, ele o faz exercendo um direito de toda a sociedade: o de ter acesso às informações que lhe interessam. Proibir previamente a sua divulgação é desrespeitar o direito de todos em benefício de um indivíduo privilegiado pelos poderes que lhe concede o Estado.

Nos casos relacionados a agentes públicos, a agentes do Estado, a democracia claramente optou pela possibilidade do ônus individual - passível de correção a posteriori - em vez do ônus coletivo, com toda a sociedade sendo prejudicada. É claro que erros e injustiças podem ocorrer, mas esse é um mal menor diante do grande equívoco de se institucionalizar a censura prévia, mesmo que apenas pela via judicial.

Se queremos mesmo uma democracia, com plena justiça, não podemos admitir que os interesses dos indivíduos, sobretudo dos agentes públicos, estejam acima dos de toda a sociedade.

Presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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