Que já se faça a partilha.
Só de quem nada possui
nada de nada terei.
Que seja aberto na praia,
não na sala do notário,
o testamento de todos.
Quero de Belo Horizonte
esse píncaro mais áspero,
onde fiquei sem consolo,
mas onde floriu por milagre
no recôncavo da brenha
a campânula azulada.
De São João del-Rei só quero
as palmeiras esculpidas
na matriz de São Francisco.
Da Zona da Mata quero
o Ford envolto em poeira
por esse Brasil precário
dos anos vinte (ou twenties),
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora
cor de cinza de Chicago.
Do Alto do Rio Negro
quero só a solidão
compacta como o cristal,
quero o índio rodeando
o motor do Catalina,
quero a pedra onde não pude
dormir à beira do rio,
pensando em nós-brasileiros
- entrelaçados destinos -
como contas carcomidas
de um rosário de martírios.
De Lagoa Santa quero
o roxo da Sexta-feira,
quero a treva da ladeira,
os brandões da noite acesa,
quero o grotão dos cajus,
onde surgiu uma vez
no breu da noite mineira
uma alma doutro mundo.
Da porta pobre da venda
de todos os povoados
quero o silêncio pesado
do lavrador sem trabalho,
quero a quietude das mãos
como se fossem de argila
no balcão engordurado-.
Ainda quero da vila
ira que se condensa,
dor imóvel e dura
como um coágulo no sangue.
Da Fazenda do Rosário
quero o mais árido olhar
das crianças retardadas,
quero o grito compulsivo
dos loucos, fogo-pagô
de entardecer calcinado,
a névoa seca e o não,
o não da névoa e o nada.
Da cidade da Bahia
quero os pretos pobres todos,
quero os brancos pobres todos,
quero os pasmos tardos todos.
Do meu Rio São Francisco
quero a dor do barranqueiro,
quero as feridas do corpo,
quero a verdade do rio,
quero o remorso do vale,
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,
quero roer como o rio
o barro do desespero.
Dos mocambos do Recife
quero as figuras mais tristes,
curvadas mal nasce o dia
em um inferno de lama.
Quero de Olinda as brisas,
brisas leves, brisas livres,
ou como se quer um sol
ou a moeda de ouro
quero a fome do Nordeste,
toda a fome do Nordeste.
Das tardes do Brasil quero,
quero o terror da quietude,
quero a vaca, o boi, o burro
no presépio do menino
que não chegou a nascer.
Dos domingos cor de cal
quero aquele som de flauta
tão brasileiro, tão triste.
De Ouro Preto o que eu quero
são as velhinhas beatas
e a água do chafariz
onde um homem se dobrou
para beber e sentiu
a pobreza do Brasil.
Do Sul, o homem do campo,
matéria-prima da terra,
o homem que se transforma
em cereal, vinho e carne.
Do Rio quero as favelas,
a morte que mora nelas.
De São Paulo quero apenas
a banda podre da fruta,
as chagas do Tietê,
o livro de Carolina.
Do noturno nacional
quero a valsa merencórea
com o céu estrelejado,
quero a lua cor de prata
com saudades da mulata
das grandes fomes de amor.
Do litoral feito luz
quero a rude paciência
do pescador alugado.
Paulo Mendes Campos (Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 1922 - Rio de Janeiro, 1 de julho de 1991) - Além de poeta, foi cronista, jornalista e tradutor. Publicou em poesia: 'A Palavra Escrita', 'Testamento do Brasil' e 'O Domingo Azul do Mar'. Destacou-se nas crônicas, que, ao lado de Rubem Braga, Fernando Sabino e outros, mudaram a maneira de fazer crônicas no Brasil. Diversos livros com reuniões de suas crônicas como 'O Cego de Ipanema', 'Os bares morrem numa quarta feira', foram republicados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário