Em sua passagem por Buenos Aires, na semana retrasada, Lula deu endosso público à guerra que a presidente argentina move contra a liberdade de imprensa em seu país. Disse, com outras palavras, que lá, como aqui, a imprensa "conservadora" não se conforma com o sucesso de governos "populares".
Pelo menos no caso do país vizinho, falar em sucesso é abuso de linguagem. O balanço de dez anos dos Kirchners no poder tem pontos positivos, mas os negativos vêm se multiplicando ao longo do segundo mandato de Cristina: inflação em alta, crescimento em baixa, investimento em queda, saldo externo em deterioração, inconsistência cada vez maior na gestão das políticas públicas. Parece familiar, não é mesmo? Mas seria injusto dizer que os governos Nestor - Cristina descrevem trajetória igual à dos governos Lula-Dilma. Sem negar semelhanças, a escala dos erros e dos problemas é muito maior lá do que aqui. Grande parte da diferença se explica pela desenfreada arbitrariedade do governo de Cristina Kirchner, tanto na economia quanto na política, inseparavelmente.
Na Argentina não são apenas verbais e localizadas as investidas contra grupos de comunicação não alinhados ao governo. O mais recente torpedo governamental consistiu em proibir supermercados e lojas de eletrodomésticos de publicar anúncios em jornais e canais de televisão. Válida para todos, a medida atinge principalmente os veículos que não contam com os recursos da publicidade oficial. O alvo principal é o Grupo Clarín.
Ele passou de amigo a inimigo do governo depois de assumir posição favorável aos protestos de agricultores contrários à criação de um tributo adicional sobre as exportações de seus produtos. Cristina cumpria o primeiro ano de seu primeiro mandato e acabou derrotada no Congresso. Jamais deglutiu o revés. Desde então, constituir um aparato de mídia sob seu controle e destruir o Clarín se tomou prioridade para seu governo. Com esse duplo propósito, Cristina não poupou recursos públicos nem esforços, entre os quais a tentativa, em andamento, de estatizar a única empresa importadora de papel imprensa do país.
Na guerra contra o Clarín, esbarrou na resistência do Poder Judiciário. Uma liminar concedida há mais de um ano protege o grupo dos efeitos da chamada "Lei da Mídia", cuja aplicação obrigaria o Clarín a vender parte de seus canais de televisão e rádio. Inconformada, Cristina conseguiu aprovar uma lei que reforma o Judiciário, tomando eletivos os assentos no Conselho da Magistratura, órgão incumbido de escolher os juizes dos tribunais argentinos. Assim como no caso da "Lei da Mídia", essa nova iniciativa é apresentada como "democratizadora".
Que o objetivo da reforma do Judiciário não é democratizar a Justiça argentina fica claro pelos limites que impõe à obtenção de liminares contra decisões do governo e pelo empenho sistemático dos Kirchners em bloquear as investigações e decisões judiciais que têm por objeto as várias denúncias de enriquecimento ilícito que pesam contra o casal, sua família e seus aliados. Da mesma forma, o modo discriminatório como o governo trata os veículos de imprensa, de acordo com sua maior ou menor proximidade com o governo, revela não ser democrático o propósito da "Lei da Mídia". Naquela mesma semana, Cristina chegou ao cúmulo de determinar que a transmissão dos jogos do campeonato argentino de futebol no domingo à noite se inicie uma hora mais tarde, para coincidir com o horário em que vai ao ar o programa do jornalista Jorge Lanata, que se tem destacado por denúncias de corrupção contra o governo.
Criar regras que limitem a concentração dos veículos de mídia nas mãos de um mesmo grupo e tornem viável a ampliação da oferta de fontes alternativas de informação é, sim, um passo na direção de maior democracia. Porém, quando a iniciativa parte de governos e partidos cuja prática política consiste em sistematicamente enfraqueceras instituições que garantem o equilíbrio do jogo democrático e põem limites ao uso discricionário do poder pelo governo de turno, é preciso não se deixar iludir pelas belas palavras e nobres intenções. Não é coincidência que iniciativas para promover o "controle social da mídia" e "a democratização da Justiça" surjam sempre irmanadas nas ações dos governos da Venezuela, da Bolívia, do Equador e na cada vez mais "bolivariana" Argentina de Cristina Kirchner.
As declarações de Lula em Buenos Aires não são surpreendentes. Pouco mais de um mês antes, gravou mensagem de apoio a Nicolás Maduro, herdeiro do projeto chavista do "socialismo do século 21". Quem ainda nutre ilusões sobre o que se esconde por trás dessa fachada deveria ouvir o diálogo gravado entre um assessor cubano e o principal ventríloquo do "jornalismo" chavista, Mario Silva, apresentador do programa La Hojilla. O diálogo tornou-se público na semana passada. Desnuda-se ali o confronto interno entre a facção civil e ideológica e a facção militar-cleptocrática do chavismo, aquela inspirada por Cuba e esta, pelas oportunidades de enriquecimento e poder que um regime arbitrário oferece.
Pela influência que tem em seu partido e no governo de sua sucessora, a palavra de Lula não é apenas uma opinião singela. As oposições devem cobrar da presidente Dilma Rousseff uma posição clara quanto às manifestações de seu antecessor. Concorda com elas ou não? Basta de ambiguidades em relação a temas tão essenciais à convivência civilizada e democrática: liberdade de expressão, autonomia do Judiciário, para não falar em direitos humanos, área em que Dilma esboçou mudanças ao início de seu mandato para logo voltar à política de vista grossa e boca fechada.
Não é aceitável dizer-se democrata em casa e solidarizar-se com toda sorte de arbitrariedades na vizinhança. É mais do que hora de acabar com isso.
Diretor-executivo do iFHC, é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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