quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Os mundos paralelos de Cristina Kirchner - César Felício


"Ainda que não tenha água, a gente se atira na piscina". A frase, surrealista mesmo dentro do contexto em que foi pronunciada, é de autoria da presidente da Argentina, Cristina Kirchner e impactou na última sexta-feira uma cerimônia que é uma síntese do atual momento do país. A presidente iniciou o ano com seus aliados cogitando uma mudança constitucional que viabilizasse a sua reeleição indefinida. Agora luta para que, no próximo mês, a eleição parlamentar que renova metade da Câmara e um terço do Senado não lhe retire a maioria no Legislativo.

A recondução tornou-se impossível sob todos os ângulos de análise: o formal, o de ambiente político, o de aceitação da opinião pública e o de clima econômico. Mas em dez anos de ciclo kirchnerista, Cristina já mostrou que sabe fazer sua retórica não apenas transitar pelo absurdo, mas também se descolar da realidade. Quem a ouve imagina estar diante de uma herdeira direta da confrontação ideológica dos anos 70. Todo o cenário montado, entretanto, mostra outra direção, a do acerto político com estruturas regionais dentro do ângulo mais conservador possível. Uma ambiguidade que é a marca registrada desde sempre do peronismo.

O evento de sexta impressiona pela quantidade de factoides: a presidente suavizou o luto que guarda pela morte do marido e antecessor Nestor Kirchner desde outubro de 2010 e botou calças "legging" pretas para inaugurar duas piscinas públicas e anunciar a reforma de outras duas. Unia-se em imagem e gesto a mandatária sofrida, mas que, com espírito jovial, recuperava um símbolo peronista: a construção de equipamentos de lazer para a população.

Na crise, prevalece a ambiguidade peronista

Também era carregado de simbolismo o palco: o município de Ezeiza, onde impera um dos caciques conhecidos como "barões suburbanos" na gíria política argentina: Alejandro Granados. Prefeito da cidade desde 1995, Granados é o pai do diretor da Agência Nacional de Aviação Civil e marido de uma deputada federal. Na violenta região metropolitana de Buenos Aires, Granados se notabilizou por abrir fogo contra delinquentes que entraram em sua casa, em 1999. Assumiu este mês a secretaria de Segurança da província de Buenos Aires (que não inclui a capital). A ida de Cristina representou um endosso.

Depois de obter apenas 26% dos votos nas eleições primárias que definiram os candidatos às eleições de outubro, Cristina tenta manter capital político se rendendo aos reis da política da periferia. Saiu da agenda a luta contra as corporações, entrou a defesa da mão pesada contra o crime. Seu candidato a deputado federal na província Martin Insaurralde, recebeu autonomia nas últimas semanas para ir a canais de televisão da oposição defender a redução da maioridade penal para 14 anos, para horror da esquerda que se acostumou a servir de claque para a presidente argentina.

Em seis anos de presidência, Cristina construiu um mundo paralelo, de contornos maravilhosos, para responder a uma oposição que a cada dia se nucleou mais nos grandes grupos de mídia. Na realidade fantástica da presidente, é possível uma pessoa se alimentar com sete pesos ao dia, quantia que se paga no máximo por uma empanada (o equivalente portenho ao pastel brasileiro) pelas ruas de Buenos Aires. Na província do Chaco, uma das pobres do país, a taxa do desemprego é de apenas 0,4% nas estatísticas oficiais. O crescimento do PIB no sonho governista foi de 8,2% no último trimestre, superior ao da China. A taxa de indigência tem padrões escandinavos: inferior a 3%.

A fantasia econômica se sustenta porque, ainda que os oposicionistas argentinos relutem em admitir, a Argentina mantém-se acima do nível do mar há dez anos e o atual governo se beneficia com o contraste das administrações nas quatro décadas que o antecederam. De 1975 a 2002, a Argentina só teve 14 anos com crescimento positivo do PIB. Mas a sensação de insegurança o governo não consegue ocultar. Transferir responsabilidades também é difícil: na Argentina, o policiamento ostensivo está na alçada federal e existe inclusive um ministério da Segurança.

"A sensação de insegurança na Argentina se alimenta pelo crime contra o patrimônio. Aqui ele é relevante, porque boa parte da população guarda suas economias em dólar dentro de casa. Isto em função de problemas causados pelo próprio governo, como a inflação", disse o diretor do instituto de pesquisas Poliarquia, Sergio Berensztein.

Segundo uma pesquisa do instituto Management and Fit, a insegurança está para o argentino como a saúde para o brasileiro. Em um levantamento em julho, 45,8% dos pesquisados apontaram a insegurança como o principal problema do país. Na última pesquisa Datafolha em que se apurou quais as principais inquietudes dos entrevistados, 48% marcaram saúde como o problema número um do Brasil. A segurança foi assinalada por apenas 10%. Na Argentina, a saúde só era um tema central para 3,5% dos pesquisados.

O dado é surpreendente, já que a Argentina conta com taxas baixas de homicídio dolosos, um dos indicadores de segurança em que a subnotificação costuma ser menor e as comparações internacionais são menos precárias. Ronda os 6 homicídios por 100 mil habitantes, em um dos raros números em que não existe um dado oficial e outro paralelo.

As pesquisas de vitimização desenvolvidas pelo Instituto Poliarquia, entretanto, indicavam em junho que 35% dos lares foram vítimas de ao menos um delito nos últimos doze meses. No estudo comparado de vitimização desenvolvido pela ONG chilena Latinobarometro, publicado em 2011, a Argentina aparece no terceiro posto com 39% dos pesquisados vítimas de algum delito. O Brasil vinha em sétimo lugar, com 32%.

Surpreendente também é a presidente argentina lembrar de um problema tão antigo agora. A violência já era apontada como principal problema do país desde o início da década passada, sem que os governantes tenham recorrido ao ativismo em torno do assunto para ganhar votos. Depois de dez anos, Cristina pode dizer que nada em piscinas vazias, mas o fato é que, sem um crescimento exuberante e com a sombra do marido morto se esmaecendo, começa a ter dificuldades de pautar o debate.

Fonte: Valor Econômico

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