Se o rigor com que se julgou o PT, pelo viés social da Justiça brasileira, tornar-se jurisprudência, teremos avançado por linhas tortas
Em artigo de jornal escrito apenas três anos atrás, por ocasião da eleição presidencial de 2010, sentia-me seguro para assinalar a impossibilidade de se falar de partidarização da Justiça brasileira.
Claro suporte para essa tese era trazido pelo silêncio em torno das numerosas nomeações de Lula para o Supremo Tribunal Federal, em cuja recomposição extensa ninguém acusava jogo político partidário ou estreitamente "ideológico".
Isso podia ser contrastado, por exemplo, com a dramática exibição de partidarismo na Justiça dos Estados Unidos a que assistíramos em 2000, na luta judicial em que resultou a disputa entre George W. Bush e Al Gore pela Presidência.
Até para espanto de alguns, aí foi possível antecipar com precisão o teor das decisões de acordo com o predomínio das nomeações de um ou de outro partido nas diversas instâncias judiciárias chamadas a manifestar-se naquele país.
Esse contraste podia ser ligado a um outro, relativo à estrutura partidária. Enquanto o caso brasileiro tem sido o de uma história de partidos fracos e estrutura partidária fluida e precariamente institucionalizada, nos Estados Unidos teríamos algo paradoxal: a partidarização da Justiça decorreria lá de certa "ossificação" resultante do próprio êxito da institucionalização e do penetrante enraizamento dos dois grandes partidos, e caberia talvez falar de um "excesso" de institucionalização.
Mas a ausência de partidarismo na Justiça do Brasil estava longe de significar a ausência de um viés importante, a saber, seu inequívoco componente elitista, com o substrato da "questão social" brasileira.
A grande desigualdade social do país tem fatalmente resultado em que os cidadãos apareçam também aos olhos da Justiça como de primeira e de segunda classes, com diferenças decisivas na possibilidade de acesso efetivo a ela e na sensibilidade e eficiência de suas respostas.
O desenrolar do processo do mensalão no STF, contudo, acaba produzindo a novidade de uma Justiça brasileira partidariamente contaminada, ou ao menos passível de ser assim percebida.
A decisão do STF quanto aos embargos infringentes é atacada por líderes políticos de oposição ao governo petista; textos na imprensa exploram (e denunciam...) o papel supostamente cumprido pelas nomeações de Dilma para o tribunal no que seria a mudança de rumo do processo (ainda que a autoridade do voto de Celso de Mello imponha reavaliações a respeito); colunistas veem como "natural" não só o fato de que a sociedade se divida quanto ao processo entre governismo e oposição, mas também o de que a mesma divisão se dê entre os próprios ministros do STF...
Como ver essa partidarização súbita? Um aspecto é banal: trata-se, afinal, de julgar ações de um partido, o PT (ou de lideranças importantes dele), no exercício do governo do país. Mas, sem entrar numa sociologia do comportamento criminoso de partidos de certo tipo no governo, há algo mais, que liga aquele aspecto à questão social e ao viés que tem imprimido em nossa Justiça.
Não só o PT é o partido que trouxe de modo singularmente intenso a questão social à disputa eleitoral, como tema vigoroso e que ameaça levá-lo ao controle demorado do poder, mas também o velho viés da Justiça respalda a hipótese de lhe ser mais fácil julgar severamente um partido com o perfil do PT do que outros.
Se a severidade, que alguns temem ter sido comprometida pelos embargos infringentes, vier a resultar em que se transformem em jurisprudência efetiva os padrões rigorosos exibidos até agora, teremos avançado por linhas tortas ao ter de generalizar princípios cuja aplicação o viés social facilitou neste caso. E talvez os embargos ajudem a que a partidarização tenha então valido a pena.
Fábio Wanderley Reis, 75, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais
Fonte: Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário