• O 15 de março refinou a crítica das Jornadas de Junho, associando a corrupção a um governo e um partido
- Folha de S. Paulo
Sondagens de opinião são ferramenta eficiente no marketing comercial e, embora superestimadas, têm seu valor no marketing político. Usá-las, porém, na interpretação de cenários sociológicos complexos equivale a praticar cirurgias delicadas com faca de cozinha. Ouvindo manifestantes do 15 de março, o Datafolha concluiu que a mensagem predominante foi o repúdio à corrupção. O óbvio, no caso, é quase uma falsificação. Nas ruas, os alvos evidentes eram Dilma Rousseff e o PT. Os protestos, de dimensões históricas, foram muito além da generalidade sugerida pelo instituto de pesquisa.
As Jornadas de Junho de 2013, deflagradas pela repressão a pequenas passeatas contra reajustes de tarifas dos transportes públicos, não foram "pelos vinte centavos". O tema da corrupção, emoldurado pela paisagem da farra da Copa, é que movia multidões sem broches partidários ou insígnias de "movimentos sociais". Naquele mês louco, contudo, os protestos dirigiam-se contra toda a elite política, responsabilizada pelo desvio de recursos públicos que deveriam ter como destino a educação, a saúde e os transportes urbanos. O 15 de março refinou a crítica, associando a corrupção a um governo e um partido. É por isso que o Planalto treme.
Nas democracias, apuradas as urnas, o derrotado congratula o vencedor. O gesto simboliza o reconhecimento do eleito como representante de todos, inclusive dos que não votaram nele. O 15 de março assinalou a deslegitimação de Dilma. Os manifestantes disseram que ela não é mais vista como a presidente de todos, mas como a chefe (ou subchefe?) de uma facção. A conclusão deriva tanto do escândalo na Petrobras quanto do estelionato eleitoral. Na leitura das ruas, Dilma aceitou a transformação da estatal em ferramenta de financiamento de um sistema de poder e mentiu aos brasileiros sobre a economia.
O Brasil experimentou um levante contra uma engrenagem específica de corrupção: a subordinação do Estado a uma facção política. A queda vertiginosa dos índices de aprovação do governo revela que o 15 de março espelha os sentimentos de uma maioria esmagadora, em todas as regiões e classes de renda. As estratégias de reação do governo, sopradas por Lula, interditam os estreitos caminhos de restauração da legitimidade perdida.
"Nós contra eles." O "diálogo" de Dilma é com o PMDB e o lulopetismo, não com a sociedade. Numa ponta, tentando refazer o tecido da base aliada no Congresso, a presidente entrega o poder a Eduardo Cunha e Renan Calheiros. A demissão de Cid Gomes, o boquirroto, é um marco na instalação desse parlamentarismo bastardo, que equivale a um segundo estelionato eleitoral. Na outra ponta, o Planalto manobra para aquecer a base militante petista, piscando um olho para os órfãos da reviravolta na política econômica. O documento sigiloso da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) ilustra esse impulso desastroso, que é o caminho mais curto rumo ao impeachment.
O texto dos sábios da Secom é uma confissão de culpa. Nele, recomenda-se violar os preceitos constitucionais sobre a publicidade oficial, concentrando a propaganda federal em São Paulo para "levantar a popularidade do Haddad" e, assim, "recuperar a popularidade do governo Dilma". Paralelamente, sugere-se centralizar o comando da "guerrilha na internet", coordenando as ações do governo, do PT e dos blogueiros chapa-branca (os "soldados de fora", na precisa definição da Secom). É a primeira admissão oficial de que a máquina estatal foi capturada por uma facção política, discriminando os cidadãos segundo a cor da camisa que vestem.
Dilma perambula, de olhos vendados, à beira do abismo. O anteparo que ainda existe é a mureta erguida entre as ruas e os partidos de oposição, um vestígio persistente das Jornadas de Junho. A chefe de facção perdeu o controle sobre o seu destino.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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