- O Estado de S. Paulo
O ano político, iniciado sem fanfarras com a segunda investidura de Dilma Rousseff na Presidência da República, já avança no seu sexto mês sem que se saiba para qual direção aponta o rumo da sua navegação. Ainda em linguagem náutica, depois de tanto ter alterado o argumento do seu primeiro mandato, parece que a presidente segue os conselhos dados nos versos de um grande poeta popular, fazendo como o velho marinheiro que, em meio ao nevoeiro, leva o barco devagar, mesmo que a sua rapaziada sinta falta de um pandeiro e de um tamborim.
O script com que exerceu seu primeiro mandato, defendido com ênfase desregrada em sua campanha eleitoral, jaz abandonado em gavetas que não mais se abrem, e que guardam, talvez para uma crítica roedora dos ratos, os papéis que justificavam sua orientação terceiro-mundista, seu capitalismo de Estado e o nacional-desenvolvimentismo que, entre nós, sempre lhe emprestou sua alma. Da cornucópia de onde jorrariam em abundância os recursos para os programas sociais mal sairão filetes, condenada como está ao contingenciamento sob controle tecnoburocrático. Obrigada, pela força das circunstâncias, a ceder em suas convicções, antes de avançar para o mar alto a presidente trocou de tripulação na condução da economia e da política, passou a evitar a ribalta e sua exposição a um público que não mais a vê com simpatia, ainda aguardando as razões da mudança de sua orientação.
Nos idos de abril, as ruas pareceram abrir-lhe as portas do inferno, com as chamadas medidas de ajuste fiscal - eufemismo para uma política de austeridade do tipo que sublevou as ruas e as praças europeias neste começo de século -, erodindo as forças de sustentação do seu partido e do seu governo nas bases sindicais e no mundo popular. O espantalho do impeachment ganhou a linha do horizonte, e velhos e recalcitrantes antagonismos ameaçam escapar da situação de equilíbrio mantida pelas artes de prestidigitação do ex-presidente Lula.
A nova tripulação, estranha ao antigo curso da navegação, contando com a cumplicidade do estado-maior da presidente, mandou às favas sem escrúpulos o programa de radicalização do nosso capitalismo de Estado - sentido velado da campanha da candidata Dilma Rousseff -, com tudo o que ele importava em termos de política internacional e de rearrumação no posicionamento das forças sociais e políticas envolvidas, e sinalizou em alto e bom som para os rumos do capitalismo sans phrase. Sem escrúpulos igualmente adotou as linhas principais do programa do seu adversário, decapitando, em movimento clássico do transformismo político, a liderança da oposição.
Salvo imprevistos - que não nos têm faltado -, o impeachment parece ter ficado para trás, e bem devagar, o governo, em meio a amotinados em sua própria embarcação, procura entre névoas um novo rumo. Desde então, nas ações presidenciais os versos famosos de Fernando Pessoa têm seu sentido invertido: sobreviver é que é preciso, e não navegar em mar desconhecido na busca de uma glória incerta. Fora do radar a iminência de uma crise política convulsiva, vida que segue, agora em tons mais cinzentos para todos, governantes e governados apertando os cintos numa economia que se retrai.
Contudo esses meses de tantas reviravoltas inesperadas não foram perdidos. Eles registram o fim de um ciclo, talvez o último do nosso longo processo de modernização em que a sociedade tem sido conduzida sob comando autoritário do seu vértice político, ora de forma aberta, como é da nossa tradição republicana, ora de modo encapuzado, tal como o nosso presidencialismo de coalizão facultou aos governos do PT, que, passada essa borrasca, jamais será o mesmo.
A conquista de um segundo mandato para a presidente Dilma que deveria importar na radicalização do primeiro, contando com o exercício do papel discricionário do Executivo, resultou no seu contrário. A partir da admissão da gravidade da crise econômica com o anúncio da política de ajuste fiscal, o Legislativo assumiu, na prática, sua autonomia diante do Executivo, movimento que deve contar com a simpatia, por suas convicções de constitucionalista, do vice-presidente Michel Temer, elevado, na pior hora da crise, ao status de um dos condestáveis da República.
O poder de iniciativa, ao menos momentaneamente - mas há algo sem volta nesse movimento -, desloca-se, pois, do Executivo para o Legislativo, tal como se tem verificado no andamento da reforma política em curso, no papel de negociação das duas Casas congressuais no ajuste fiscal e na reforma trabalhista que disciplina a chamada terceirização. Mutação nada trivial na experiência republicana sob a hegemonia do PT.
Nos dois governos do ex-presidente Lula - não importa se em cenário mais favorável que o atual -, o talento político da sua principal liderança soube reunir em sua base de sustentação um conjunto de forças sociais e políticas inéditas em nossa vida republicana, atribuindo a cada qual uma posição no governo. Do agronegócio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do empresariado aos sindicatos, todos encontraram seu lugar no amplo condomínio que se tornou a máquina governamental.
Assim, pela perícia política do ex-presidente, a que não faltou sorte, os antagonismos presentes em nossa sociedade foram postos em equilíbrio, o que seu estilo pragmático de governar, fiel à sua formação no sindicalismo de resultados, favorecia. Ao contrário de Lula, que chegou ao capitalismo de Estado por conveniências da hora, a presidente Dilma, com outra origem, adotou-o por convicção, perdendo de vista o que foi essencial à política do seu antecessor - manter em equilíbrio os antagonismos que já começam a ganhar as ruas e os debates públicos.
Não há dúvida, é o começo de outra história. Se melhor, depende da política que praticarmos nela.
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Luiz Werneck Vianna é sociólogo da PUC-Rio
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