sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A ciência no descaminho | José de Souza Martins

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Na primeira noite, eles se aproximam e roubam um livro da biblioteca de cada universidade. E nada dizemos. Na segunda noite, já não se escondem. Dizem abertamente, sem temor nem pudor, que os livros oneram o orçamento, que o conhecimento é supérfluo, que o professor é caro, que as descabidas e escandalosas mordomias dos políticos são intocáveis, vêm antes dos livros e das escolas, que o diploma é irrelevante em face da bravata de palanque, das muitas tolices que políticos desinteressados do saber sabem dizer.

Cortam os recursos para o progresso da ciência, debocham dos cientistas, desdenham o ensino e a pesquisa, e não dizemos nada. Na terceira noite, colhem os jovens do jardim do nosso futuro, matam nossas esperanças, e continuamos a não dizer nada.

Na quarta noite, entram em nossa casa, comem o nosso pão, bebem a nossa água, escarram em nosso chão, põem fogo em nossos livros e picham na parede de nossa vida: "A ignorância é sábia; a ciência é supérflua". E como não fizemos nada, e nada dissemos, nada podemos fazer nem dizer. Desaprendemos a ler e a escrever, perdemos nossa memória, esquecemos da decisiva relevância do conhecimento erudito e da ciência na vida e na construção de uma nação civilizada e moderna.

Na quinta noite, nosso silêncio ensurdecerá a terra, cobrirá o grande sertão, as matas, o cerrado, os campos. Por não termos dito nada até que essa noite de horror, prepotência e ignorância caísse sobre nós, os incultos que mandam em nós, na nossa ciência, em nossa cultura, não encontrarão resistências para fazer o que bem entenderem. Dirão, com sabedoria de botequim, que é mais barato piratear e copiar conhecimento dos outros do que criar conhecimento original.

Não sabem que mesmo para copiar o que presta é preciso ter a alta competência de também criar, inventar, inovar. Cortar verbas na educação combina com burrice. Estamos condenados a jogar no lixo o saber acumulado que nos legaram nossos antepassados, sábios e generosos.

Ficaremos contemplando a parede e a frase, a tolice que nos legam os que raramente passaram no vestibular de uma universidade séria, mas que mandam nos recursos e nos critérios da produção do conhecimento. São aqueles personagens do mundo cinzento do nada que, sem competência nem discernimento, decidem o que deve ser o ensino e a pesquisa, o saber e a ciência, num país que os professores, pesquisadores e cientistas, desconsiderados e desrespeitados, padecem para levantar do chão.

No sétimo dia, usaremos as últimas páginas de livros e as últimas folhas do caderno vazio, que governantes sedentos de poder e pobres de civilidade esqueceram de destruir, para acender o fogo que aquecerá o que nos resta de vida na fria noite que se aproxima. O desgoverno terá triunfado sobre a democracia, a liberdade, a cidadania, o conhecimento, a ciência, a pesquisa, a arte, a poesia e a vida.

E quando um desses inimigos do saber e da pátria tiver um problema cardíaco e lhe for aberto o peito, num dos nossos hospitais universitários, para salvar-lhe a vida, já não poderemos fazê-lo. Ou se apresentar no hospital porque incapacitado para lembrar quem é, descobrirá que já não temos o conhecimento para salvar o que resta de seu cérebro vazio.

Quando tivermos que construir uma ponte para atravessar o rio que nos separa de nós mesmos, descobrirão que sem a universidade de qualidade, quando muito, nossos engenheiros saberão fazer uma rústica pinguela para o lado do mero ontem, mas não a ponte que nos levará ao futuro que merecemos e nos está sendo roubado. Os que tudo podem descobrirão que nos dias derradeiros estarão sozinhos, apenas cinzas nas estantes do que um dia foram as bibliotecas das universidades, as salas de aula, os laboratórios, a febril produção e distribuição do saber, como é próprio do mundo do conhecimento.

Socorro-me de "No Caminho com Maiakóvski", do poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa, e o parafraseio para dizer o já dito, mas esquecido por aqueles que mais esquecem do que lembram, que mais ignoram do que sabem, que mais mandam do que servem.

Quando governantes ignaros dizem que as ciências humanas são dispêndio inútil e o dizem com a cumplicidade de pesquisadores das exatas e biológicas, nem percebem que sem elas a universidade se torna simples escola técnica. Nela já não se cria, pois sem as indagações e descobertas das ciências humanas a coisificação da pessoa se consuma; sem a arte e a literatura o ser humano é reduzido a equivalente de porcas e parafusos, de cachaça, de maconha, de cocaína. Sem poesia a vida se torna uma droga, perde o sentido que deveria ter. Sem ela não se compreende a lágrima nem a dor nem a ignorância nem a esperança.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).

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