- O Globo
Num retrato da intolerância europeia, a ‘Lei do Holocausto’ pune com três anos de cadeia quem falar o que não deve
Na semana passada, o Senado polonês aprovou uma lei “protetora da reputação” do país, que pune com até três anos de prisão quem sustentar “publicamente, contrariando os fatos”, que “a nação polonesa ou a República da Polônia é responsável ou corresponsável pelos crimes cometidos pelo Terceiro Reich”. Simulando uma defesa da liberdade de expressão, excluiu do alcance da lei “atividades artísticas ou acadêmicas”.
A menos que a pressão internacional cresça, o presidente Andrzej Duda sancionará o texto. Ele já declarou que o povo polonês “como nação” jamais participou do Holocausto. Isso não quer dizer nada. O que se vê é seu governo querendo calar uma discussão incômoda.
Poucas coisas seriam piores para a reputação da Polônia do que essa “Lei do Holocausto”. Até as pedras sabem que os campos de extermínio de Treblinka e Auschwitz foram concebidos, construídos e administrados pelos alemães. O problema está mais adiante: na atividade de poloneses que massacraram judeus e saquearam suas propriedades.
Em 1941, quando a Alemanha invadiu a parte do país ocupada pelos soviéticos desde 1939, poloneses mataram judeus sem a participação da tropa do Reich. Na cidade de Jedwabne, de 2.500 habitantes, seus 1.500 judeus foram massacrados nas ruas ou queimados vivos num celeiro. Metade dos homens adultos de Jedwabne participou do massacre e foi nominalmente identificada. (Em outra cidade, o pai de Yitzhak Shamir, que veio a ser primeiro-ministro de Israel no século passado, foi morto pelos vizinhos depois de fugir dos alemães.)
Atrás do antissemitismo, em Jedwabne, Varsóvia, Viena e Berlim, estava o poderoso fator da cobiça de seus bens. Poloneses que escondiam judeus pediam-lhes que não revelassem suas identidades, por medo de serem saqueados ou mortos. Quem viu o filme “Ida” aprendeu uma parte dessa história.
Terminada a guerra, as terras vizinhas ao campo de Treblinka viraram uma Serra Pelada, com centenas de poloneses escavando-as em busca de corpos de judeus. Quando alguém achava um crânio, levava-o escondido para casa e lá procurava por ouro nas arcadas dentárias. O livro “Golden Harvest” (“Colheita dourada”), de Jan Gross, está na rede, com sua capa estarrecedora.
Em maio de 1946, quando já havia sido instalado o Tribunal de Nuremberg para julgar a cúpula do III Reich, 42 judeus foram mortos na cidade de Kielce. Entre julho e setembro, 63 mil judeus fugiram da Polônia para a Alemanha ocupada. No primeiro ano do pós-guerra, poloneses mataram perto de 1.200 judeus.
O antissemitismo de uma parte considerável da nação polonesa conviveu com o regime comunista. Em 1969, a ditadura do proletariado forçou a saída de 20 mil dos 30 mil judeus que ainda viviam no país.
A Polônia não precisa ser marcada pela “Lei do Holocausto”. Sua história é maior que esse espasmo radical da xenofobia e do racismo europeu redivivo neste início de século. A resistência polonesa ao Reich foi maior, de longe, que a dos franceses e a dos italianos, somados. A guerra custou ao país 20% de sua população, um terço dos moradores de suas cidades desapareceram. Metade dos advogados, 40% dos médicos e um terço dos professores universitários e padres católicos morreram. E três milhões de judeus.
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