Uma parte considerável das vicissitudes econômicas nacionais resulta da mentalidade segundo a qual basta a simples vontade para que qualquer um dos tantos direitos econômicos e sociais previstos na Constituição deixe o papel em que está inscrito e se converta em realidade.
Tome-se o exemplo da saúde: a julgar pelo que vai na Carta Magna, o Brasil deveria dispor de um sistema público impecável, capaz de fornecer tratamento a todos os cidadãos (“universal”, conforme o artigo 196) e para qualquer caso (“integral”, conforme o artigo 198). Em duas passagens do texto constitucional, a saúde é tratada como “direito” (artigos 6.º e 196). Apesar de tudo isso, como sabe qualquer um que já tenha precisado de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), esse “direito” não se realiza nem remotamente na plenitude imaginada pelos constituintes, entre outras razões porque faltam recursos para tamanho empreendimento. É a realidade impondo-se aos desejos.
Então, para ter um atendimento de saúde um pouco melhor, resta ao cidadão, se tiver condições financeiras para tal, procurar algum dos planos que franqueiam acesso ao sistema privado. Aqui, não há mágica: o serviço existe porque se paga por ele – uma relação comercial como qualquer outra. Se assim não fosse, não haveria serviço, pois tudo tem um custo, especialmente algo tão necessário como a saúde. Nesse sentido, saúde é, sim, “mercadoria”, que, como qualquer outra, só é produzida e ofertada se seu preço compensar o investimento nela realizado.
Não é o que pensa, contudo, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal. Por meio de liminar, a magistrada suspendeu resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que regulamenta a cobrança de franquia e coparticipação em planos de saúde sob o argumento de que a medida ameaça “direitos conquistados”, por permitir que as operadoras cobrem de usuários até 40% do valor de atendimentos, como consultas e exames. Pode-se discutir se os parâmetros estabelecidos pela ANS são corretos, mas não nos termos utilizados pela presidente do Supremo. Em seu despacho, a ministra Cármen Lúcia escreveu que “saúde não é mercadoria”, que “vida não é negócio” e que “dignidade não é lucro”. Num texto que deveria ser técnico, a magistrada caiu na tentação populista e tratou as operadoras de planos de saúde como se fossem (ou devessem ser) entidades sem fins lucrativos.
Vocalizando um discurso comum entre os brasileiros que acreditam que a economia de mercado é algo feio e que lucro é uma ofensa, a ministra Cármen Lúcia expressou também preocupação com os usuários de planos de saúde que se encontram em “estado de vulnerabilidade” ou “inegável hipossuficiência”. Ora, como a ministra deveria saber, ninguém é obrigado a ter planos de saúde, muito menos os cidadãos que não têm condições de arcar com seus custos, como os vulneráveis e os hipossuficientes. Para estes, há o SUS.
Mas a presidente do Supremo parece entender o “direito à saúde” como se fosse “direito a ter plano de saúde” – e, como se estivesse lidando com um caso urgentíssimo, resolveu intervir durante o plantão do tribunal, embora a resolução da ANS só devesse entrar em vigor em seis meses. A ministra Cármen Lúcia justificou a pressa dizendo que era preciso dar segurança jurídica aos usuários dos planos, mas uma liminar – que pode cair a qualquer momento – é, por definição, precária.
A presidente do Supremo entendeu ainda que a ANS “usurpou” prerrogativa do Congresso ao regulamentar tema que envolve “matéria relativa ao direito à saúde”, embora a resolução seja ato administrativo próprio da agência. Na Lei 9.961/2000, que criou a ANS, está dito que cabe à agência “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores”. Foi o que a ANS tentou fazer, procurando encontrar uma solução técnica para um problema complexo, num setor em que os custos sobem continuamente. Para os adeptos do pensamento mágico, contudo, aceitar a realidade econômica viola a Constituição.
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