- Valor Econômico
Estados não admitem que não têm dinheiro para saneamento
Qualquer um que leia minimamente o noticiário sabe quanto o governo quer economizar com a reforma da Previdência: cerca de R$ 1 trilhão em dez anos. Mas você sabe qual é o volume de investimentos que o setor de saneamento poderá receber em 14 anos para atingir a universalização do acesso da população brasileira às redes de água e esgoto tratado? Os números vão de R$ 650 bilhões, na avaliação do especialista Ítalo Joffily, a R$ 800 bilhões, na estimativa da Abcon (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto). O Ministério da Economia calcula que o investimento seja de R$ 700 bilhões. Para efeito de comparação, mantido o orçamento deste ano, de cerca de R$ 30 bilhões, o Bolsa Família consumiria R$ 420 bilhões em 14 anos, numa conta grosseira.
É esse volume de investimentos que está em jogo na queda de braço entre governos estaduais - com suas bases no Congresso - e o governo federal em torno da votação da Medida Provisória 868, que trata do novo marco regulatório do saneamento. A MP, editada no fim de dezembro e modificada pelo relator da comissão mista do Congresso, senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), caduca no dia 3 de junho, caso não seja votada.
O mais espantoso é que um assunto de tanta relevância e com potencial de geração de tantos negócios, como fusões e aquisições, privatizações, concessões, ofertas de ações e de debêntures, não tenha sido abraçado pelo mercado financeiro. Nos relatórios diários enviados pelos bancos aos clientes, a menção à MP quase sempre se resume à articulação política em curso para testar a base de apoio ao governo e para destravar a pauta, abrindo espaço para a tramitação da reforma da Previdência.
Em um país em que 72,4 milhões de brasileiros, população equivalente à da França, não têm acesso à rede de coleta de esgoto, e outros quase 100 milhões não têm esgoto tratado, vários Estados estão preocupados em perder para a iniciativa privada os contratos de suas empresas públicas, que, em muitos casos, empregam funcionários em excesso e acabam sendo utilizadas politicamente para distribuição de cargos a aliados.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua divulgada ontem mostra que o acesso ao serviço de saneamento ficou estagnado no último ano e isso é reflexo da falta de capacidade de investimento dos Estados. "A grande parte do investimento feito até aqui veio do setor público. Mas não há como avançar porque essa capacidade se esgotou", diz Gustavo Guimarães, presidente da Iguá Saneamento, que já trabalhou na Sanepar, a empresa pública de saneamento do Paraná. "A discussão não deveria ser se os novos projetos serão de gestão pública ou privada. O problema é que os investimentos nos últimos anos vêm diminuindo, quando deveriam estar aumentando."
A MP 868 é longa e complexa, mas três pontos merecem destaque. O primeiro é o de atribuir à Agência Nacional de Águas (ANA) a competência de estabelecer normas de referência nacionais para os serviços públicos de saneamento básico, lembrando que a concessão, por lei, é uma atribuição dos municípios. A ANA passa a ser, de fato, uma agência reguladora.
O segundo ponto é a permissão de criação de blocos, reunindo municípios que não precisam estar na mesma bacia hidrográfica. "Isso facilita muito a criação de consórcios, em que se pode juntar municípios menos e mais rentáveis, como foi feito recentemente na concessão de aeroportos", explica Fernando Camargo, da LCA Consultores.
A possibilidade de criação de consórcios põe por terra um dos argumentos contra a MP, a de que a medida acabaria com os subsídios cruzados praticados hoje pelas companhias estaduais, em que municípios menores ou populações mais carentes são subsidiados pelo serviço prestado em outros locais. "Isso é um argumento falacioso. No Brasil, hoje, 70% das concessões privadas são em cidades com menos de 70 mil habitantes. Há concessões privadas em Estados com baixa renda per capita, como o Piauí", diz Ítalo Joffily, da Y.Sanso Soluções Integradas de Saneamento. Guimarães, da Iguá, faz coro: "De nossos 18 contratos, 11 são em cidades com menos de 100 mil habitantes. E todos têm resultado positivo".
Mas é o terceiro ponto de destaque que está gerando mais polêmica. Hoje, municípios fazem contratos com empresas públicas sem licitação, os chamados contratos de programa, em que muitas vezes não há compromissos de investimento ou metas e indicadores. No texto da MP em tramitação, a possibilidade de novos contratos de programa foi extinta e se estabeleceu a necessidade de licitação, além de inclusão de metas e indicadores nos atuais contratos de programa. Para garantir que investimentos públicos já feitos sejam remunerados, a MP também estabeleceu uma indenização àqueles que ainda não tiverem sido amortizados.
Na prática, a resistência a esse ponto da MP reflete a incapacidade da maior parte das empresas públicas de concorrer com as privadas, dada a situação fiscal de muitos Estados e municípios e à gestão ineficiente de muitas delas. "Numa licitação, as estaduais sabem que podem perder para as privadas por absoluta falta de recursos financeiros e de gestão. E mesmo que fossem capazes de competir, não vêm se mostrando dispostas a assumir compromissos de investimento e de qualidade de serviço", diz Camargo, da LCA, citando o exemplo de uma empresa em que as despesas superavam regularmente as receitas, especialmente por causa da folha de salários.
Representantes do setor de saneamento apontam apenas três empresas de controle estatal que teriam condição de competir no novo formato: Sabesp, de São Paulo, Sanepar, do Paraná e, em menor grau, Copasa, de Minas Gerais. Para isso, sim, o mercado financeiro está atento. As ações da Sabesp acumulam na bolsa alta de 37,68% no ano, em parte também impulsionadas por declarações do atual governo de São Paulo sobre privatização ou maior abertura à participação de capital privado. As preferenciais de Sanepar sobem 27,11%.
O Brasil tem hoje indicadores de esgoto piores que os de Iraque, África do Sul, Marrocos ou Bolívia. A ampliação dos investimentos tem o poder de reduzir gastos com saúde, criar empregos, valorizar áreas imobiliárias e gerar operações no mercado de capitais. É hora de deixar questões ideológicas (ou outras não republicanas) de lado.
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