O Globo
Pedidos oficiais de desculpas são registros
civilizatórios essenciais para o conhecimento de quem somos
A História está coalhada de memoráveis pedidos de desculpas públicas, moldadas por graus variáveis de sinceridade e intento de reparação. Pena que só vez por outra essas penitências oficiais por atos cometidos por (a)gentes do passado conseguem ser confrontadas com situações presentes. No âmbito de nossas relações pessoais, é fácil: a sinceridade de uma jura de não repetição do erro é perfeitamente auditável por quem sofre o abuso. Basta aguardar os dias seguintes. Mais difíceis e complexos de avaliar são os pedidos oficiais de desculpas por crimes deliberadamente enterrados na História por uma instituição, governo ou nação. Ainda assim, são registros civilizatórios essenciais para o conhecimento de quem somos.
Nesta semana coube ao Papa
Francisco, de 85 anos e saúde frágil, fazer uma peregrinação de
penitência oficial ao Canadá. Foi solene e
sentido seu pedido de perdão pelo sistema de “reeducação” forçada para
crianças indígenas,
promovido pelas escolas católicas daquele país a partir do século XIX.
Estima-se que mais de 150 mil crianças dos povos originários tenham sido
retiradas de suas famílias por ordem de sucessivos governos canadenses e
internadas em escolas distantes de suas raízes para assimilar a cultura branca dominante.
Sessenta por cento desses internatos eram administrados pela Igreja dos Papas.
Ao longo de quase 150 anos, gerações e gerações dessas crianças foram
“civilizadas” à força, impedidas de falar em suas línguas nativas, obrigadas a
se tornar cristãs e submetidas a toda sorte de abuso. As que morreram enquanto
internadas foram enterradas em cemitérios espalhados pelo país, não raro de
forma anônima. Muitos egressos desse desenraizamento forçado se suicidaram,
outros buscaram refúgio no álcool, nas drogas. O tamanho do horror só foi
minimamente mapeado entre 2008 e 2015 por uma Comissão de Verdade e
Reconciliação nacional.
Para Evelyn Korkmaz, que viveu dos 10 aos
14 anos numa dessas “residências” católicas em Fort Albany, província de
Ontário, a vida seguiu. Hoje sexagenária e defensora dos internados de outrora,
ela lembra que havia uma “cadeira elétrica” na escola, à qual crianças eram
ocasionalmente amarradas. Em depoimento à Deutsche Welle, Korkmaz relatou
abusos, estupros e mortes ali ocorridas. Lamenta ouvir desculpas papais após 50
anos de dor acumulada.
O Pontífice chamou de “catástrofe” a
existência das “escolas residenciais”. E alongou-se nas excusas:
— É com humildade que peço perdão pelo mal
cometido por tantos cristãos contra os povos indígenas... Peço perdão, em
particular, pela maneira como integrantes da Igreja e de comunidades religiosas
colaboraram com o projeto...
Foi pouco.
Não deve ter escapado aos representantes
das Primeiras Nações, dos inuítes e dos métis, que o Papa se esquivou de
responsabilizar a Igreja Católica como instituição — o mal teria sido cometido
por “cristãos”, “integrantes da Igreja”, “entidades católicas locais”. Ele
também reservou para uma sessão a portas fechadas com cardeais, bispos e outros
integrantes do clero canadense um dos temas mais espinhosos da internação
forçada daquelas crianças: “abusos sexuais de menores e vulneráveis”.
Teria sido uma oportunidade para avançar de
público na condenação da prática que tanta miséria humana já causou entre seus
fiéis. Só na Austrália, entre 1950 e 1980, 4.445 casos de abuso sexual foram
acobertados pela Igreja. Na França, uma investigação de 2021 concluiu que
nenhum dos 3 mil padres ou católicos associados que abusaram das mais de 215
mil vítimas foi responsabilizado pela Igreja. No Canadá, apenas uma fração dos
5 mil predadores sexuais que abusaram de crianças indígenas responde a processo
criminal. O próprio governo federal canadense de épocas anteriores destruiu 15
toneladas de documentos relacionados à rede de “residências” entre 1936 e 1944.
Uma frase do atual primeiro-ministro Justin
Trudeau sobre reparação e ação no contexto histórico de seu país merece ser
lida duas vezes, para melhor sedimentação:
— Quando os internatos ensinavam às
crianças indígenas que elas não tinham identidade nem valor, tampouco tinham
idioma, as demais escolas do país ensinavam o mesmo às crianças canadenses [da
maioria] não indígena. Enraizou-se assim em nossa história o legado de anular a
dignidade dos povos originais.
E o Brasil? Nos últimos três anos e meio
testemunhamos tentativas celeradas de aniquilamento oficial de nossa história.
Melhor não contar com penitências. Talvez, quem sabe, no futuro, em alguma
penitenciária.
2 comentários:
O papa atual é bem diferente dos outros,pediu desculpas até aos homossexuais pela perseguição da Igreja,está fazendo bonito,não podemos criticá-lo.
Este papa, como o bem intencionado João Paulo I, é chefe duma igreja responsável por milhões de assassinatos. Não surpreende a incapacidade desta instituição de reconhecer seus tantos crimes, enquanto cobra que seus devotos confessem seus inocentes pecados. Como em qualquer sociedade humana, tem bons e maus membros. Mas os péssimos são e sempre foram muito numerosos. Suponho que este papa não esteja entre os piores, mas todos estes estão ardendo junto com o capeta nos quintos dos infernos, aguardando a chegada do genocida capitão das rachadinhas e do barrigudo general Pazuello, corresponsáveis pela tragédia da Covid no país, e pela pior gestão da pandemia entre todas as nações do mundo! Nem nas piores ditaduras a incompetência foi tão grande quanto neste maldito DESgoverno Bolsonaro!
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