O Globo
É preciso lembrar que o orçamento secreto
não acabou. Não acabou com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro. Por que vai
subitamente esquecido? Não ficou de repente menos grave. Não pode haver se
tornado, de ontem para hoje, admissível. Criado por Bolsonaro, a própria
assinatura no contrato que pactuou a sociedade entre o governo e o consórcio
parlamentar que tinha em Ciro Nogueira, senador feito ministro, o embaixador, o
orçamento secreto não acabou.
Está aí. Nunca tão influente. Adensando-se
no ocaso do governo. Tornando-se incontornável para a ascensão do próximo.
O orçamento secreto. Um dos grandes vencedores da eleição, sob as barbas do Supremo Tribunal Federal (STF). O maior vencedor do primeiro turno, impondo-se aos cálculos políticos — sim, temos isso — de nossa Corte constitucional. Grande vitorioso e também grande eleitor. O orçamento secreto. Reelegeu-se, como sistema de controle de poder concentrado, e reelegeu o Parlamento. Reelegeu o esquema autoritário que reelegerá Arthur Lira presidente da Câmara.
O orçamento secreto. A distribuição de
bilhões de dinheiros públicos nas mãos de pouquíssimos — Rodrigo Pacheco
incluído. Distribuição de bilhões sob indicação obscura de patronos
apadrinhados pelos senhores do Congresso — definição, ao mesmo tempo, de compra
de votos no Parlamento e na ponta e de péssima qualidade no gasto público.
Grana que chega ao município, elege desequilibrando as disputas e estabelece os
feudos, não gera obra permanente, apenas empresas, inaugurações e fotos; e não
raro se derrama na modalidade propina.
Está aí. Enraizado. O orçamento secreto.
Agente oculto — mais ou menos oculto — que condicionará o regime, o grau de
emagrecimento, da PEC da Transição. Vem dando as cartas. Dita o ritmo das
negociações e dá estatura imperial a Lira. Será, tudo mais constante,
instrumento de governabilidade para Lula. Ser-lhe-ia compulsoriamente, houvesse
resistência. Será — o mundo real se impõe — ferramenta incorporada pelo novo
governo, talvez para que se firme sociedade como aquela que comprou para
Bolsonaro a PEC Kamikaze.
Será, se o Supremo não agir. Não há mais —
não a esta altura — como desmontar o bicho, senão sob a declaração de sua óbvia
inconstitucionalidade. A emenda do relator, frontispício para o exercício do
orçamento secreto, é multiplamente inconstitucional. O STF tem de matar o
mecanismo que hoje — muito mais que quaisquer fake news — depaupera,
desestabiliza, a República.
Bolsonaro foi competitivo — e poderia ter
vencido a eleição — não por efeito de gabinete do ódio, mas como consequência
da derrama contratada pelo orçamento secreto. O STF tem de agir, ou nem o
tribunal será capaz de fulminar o monstro. E que não nos venham os ministros
com modulações. Com jeitinhos. A armadilha da acomodação — para que a coisa
permaneça — está posta. Discurso ensaiado; para que se finjam mudanças, ajustes
cosméticos, que não tocarão no fundamento antirrepublicano do vício.
A armadilha: concentrar o enfrentamento no
caráter secreto do troço, atacar somente a falta de transparência, ignorando —
deixando passar incólume — a gravidade imensamente maior de o dispositivo
consistir em gestão para que os donos do Congresso distribuam exclusivamente
aos seus, por ano, cerca de R$ 20 bilhões do Orçamento da União.
Aliás, em matéria de transparência, o
Parlamento já deu — sinto muito — uma banana ao Supremo, atropelado,
desmoralizado mesmo, quando colheu por resposta a uma determinação sua, por
publicidade, a criação, pelo Congresso, de novas fachadas para dificultar a
identificação dos padrinhos das emendas. Esculacho.
Até hoje o comando das casas parlamentares
não entregou — desrespeitando ordem do STF — uma lista completa com os
deputados e senadores que indicaram verbas via orçamento secreto. Ao contrário,
criaram a figura do tal usuário externo, a formalização do laranja na
destinação de dinheiros públicos. Esculacho.
O que espera o STF?
Qual o cálculo político — ai, ai — de agora
no Supremo? Esperarão que se vote a Lei Orçamentária Anual, em que vai contido
o orçamento secreto, para só então se mexer? Esperarão que a coisa ganhe mais
um ano de formalização, mais uma camada de complexidade, para cuidar dessa
perversão?
Sinceramente, o que produz hoje o Supremo
senão palco para a onipresença de Alexandre de Moraes?
Que não se tenha dúvida: a maneira de o STF
dar respostas consistentes à sociedade desconfiada — descrente da tessitura
institucional — está em se esvaziar dos ímpetos monocráticos e enfrentar
matérias constitucionais em sua forma plenária. A bola está quicando.
Há quanto o tribunal não dirige um
julgamento de grande tema constitucional em seu colegiado? Está na hora. Que
seja para se expressar impessoalmente contra o orçamento secreto. A República
agradecerá, embora não seja favor.
Um comentário:
Parece uma noiva virgem, inocente e pouco experiente diante da Noite de Núpcias ou é só impressão jornalística do autor?
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