O Globo
Perspectiva de uma Presidência medíocre
combina mal com o arrojo anunciado por Luiz Inácio Lula da Silva para o
terceiro mandato
O ser humano é incapaz de desbravar novos oceanos se não tiver a coragem de perder de vista a terra firme, escreveu o Nobel de Literatura André Gide. Fundador da classuda editora parisiense Gallimard, o aclamado escritor nascido em família da alta burguesia não distribuía ensinamentos sem lastro. Foi homossexual assumido e ancorou sua vida e obra numa mesma busca permanente: por honestidade intelectual. Sabemos bem quanto essa busca costuma ser fugidia. No mundo da política, não é muito diferente. O líder que quiser desbravar horizontes realmente novos na busca de soluções para os males do presente e esperança para o futuro terá de arriscar, cortar muitas das amarras confortáveis. Se não o fizer, ou se navegar só pela metade, ou se nem sequer tentar mudar de lugar montanhas de erros acumulados por gerações, é naufrágio certo. Por mediocridade.
Decididamente, a perspectiva de uma
Presidência medíocre combina mal com o arrojo anunciado por Luiz Inácio Lula da
Silva para seu terceiro mandato. Tampouco foi eleito para manter o país
castigado em sua eterna e arcaica configuração social. A eleição de Lula lhe
permite pensar grande e alto, empurrado pela cobrança de quem o elegeu. Ao
final do período regulamentar de quatro anos, é esperado que ele consiga
entregar aos brasileiros o embrião de um país menos desigual, mais justo e mais
bem entrosado com as preocupações planetárias do século XXI. Mas, como para
qualquer governante moderno, é estreita a janela de tempo de que dispõe o
presidente eleito para acertar o curso da navegação.
Perdemos a capacidade de esperar. No caso
do Brasil, não tanto pelo culto à satisfação imediata apontado nos escritos do
polonês Zygmunt Bauman (aquele da “sociedade da instantaneidade” ou “sociedade
líquida”), mas pela sensação de emergência nacional: o país precisa se
reinventar ou afundamos todos. Até porque a lição mais importante que a
História pode nos ensinar é que aprendemos pouco com ela.
— Nós estamos vivendo um grande regresso. É
uma regressão a um ponto civilizatório anterior. Se antes as pessoas queriam um
pai e uma mãe, nós regredimos para ter o messias [ forma como o ainda
presidente Jair Bolsonaro é visto por seguidores] — avisava Marina Silva em
entrevista ao jornal digital amazonense Sunaúma, em outubro. — É o cúmulo da
regressão de uma visão infantil, impotente, assustada, apavorada do mundo. Isso
é muito perigoso, porque aqueles que se apavoram são capazes de destruir o
próprio mundo que os apavora.
Como se sabe, a recém-eleita deputada
federal é nome de primeira grandeza para qualquer cargo de nível ministerial à
altura de seu conhecimento em meio ambiente. Fez bem em guardar na cartucheira
uma frase ouvida de um psicanalista amigo:
— Aonde for, seja.
Seja para onde ela for, dentro ou fora do
governo Lula, em meio a trombadas desnecessárias e desgastantes nessa área,
Marina Silva sempre será... Marina Silva. E nada fará com que Simone Tebet, com
ou sem cargo ministerial, e queira ou não o PT, seja diminuída em estatura de
presidenciável para 2026.
Haverá mais engasgos pontuais na formação
do primeiro escalão, assim como já ocorreram baixas em nomeações corretivas no
futuro Ministério da Justiça de Flávio Dino. Ainda assim, o Brasil de Lula que
nasce em 1º de janeiro de 2023 permite esperançar. O país terá não apenas um
Ministério das Mulheres para chamar de seu, não apensado a outras pastas, como
será chefiado por Aparecida Gonçalves, gabaritada veterana em políticas
públicas para mulheres. A indicada terá trabalho insano para fazer baixar os
índices de violência e feminicídio. Terá trabalho igual para tirar o país da
última colocação entre 16 países da América Latina e Caribe: temos o menor
número de mulheres em cargos de liderança no setor público — apenas 18,6%,
quando a média regional é de 41,5%.
Não só por isso. É quase um luxo saber que
o país terá no comando do Ministério da Saúde uma pesquisadora como Nísia
Trindade, um jurista e intelectual da dimensão de Silvio Almeida para chefiar o
Ministério dos Direitos Humanos e a cearense Izolda Cela à frente da Secretaria
de Educação Básica para arrancar o Brasil do apagamento a que tem sido relegado.
A navegação está apenas começando.
Naufragar não deveria ser uma opção.
Um comentário:
''Navegar é preciso,viver não é preciso''...
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