Correio Braziliense
Quantos "memes" natalinos recebemos
nos últimos dias? Falam de paz, amor, amizade, cooperação, paz, bondade,
caridade, ou seja, do altruísmo recíproco dos seres humanos. O Natal é um rito
que consagra esses sentimentos
No Natal de 1914, durante a 1ª Guerra Mundial, na região de Ypres, na Bélgica, houve uma trégua não-declarada de seis dias. Com trincheiras decoradas, soldados alemães entoaram antigas cantigas e passaram a comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Soldados ingleses e franceses jogaram uma partida de futebol na "terra de ninguém", sem que os alemães nada fizessem, além de assistir ao jogo. A festa continuou até o ano-novo. A confraternização entre soldados de países em conflito se repetiu em vários momentos, apesar da carnificina provocada por novos armamentos, como bombas de gás, lança-chamas, ataques aéreos e carros blindados. Em 1916, soldados franceses e alemães se anteciparam ao Armistício em muitas frentes de batalha.
Do ponto de vista dos generais, a
cooperação mútua era indesejável porque não ajudava a ganhar a guerra. Mas era
altamente desejável do ponto de vista individual para os soldados de ambos os
lados. Por patriotismo, até queriam ganhar a guerra, mas individualmente
prefeririam voltar à vida normal. Um coronel britânico, ao visitar as
trincheiras, ficou estupefato ao ver soldados alemães caminhando ao alcance das
armas inglesas: "Nossos homens pareciam não ter notado isso. Tomei a decisão
de acabar pessoalmente com esse tipo de coisa tão logo assumisse o comando;
coisas como essas não poderiam ser permitidas. Evidentemente aquelas pessoas
não sabiam o que era uma guerra. Ao que tudo indicava, os dois lados
acreditavam na política viva-e-deixe-viver".
Atiradores de ambos os lados exibiam seu
virtuosismo mortal ao disparar contra alvos inanimados, próximo aos soldados,
como cantis e panelas. "À noite, saíamos e nos posicionávamos diante das
trincheiras… Os soldados alemães também estão fora, de modo que atirar é algo
contrário à etiqueta." Naquela guerra, soldados britânicos e alemães
ficaram muitos meses frente a frente entrincheirados, sem saber se seriam
transferidos para outro front ou não. Sonhavam com o fim da guerra e a volta
para casa. Era uma combinação entre o desejo individual e o "altruísmo
recíproco", que o Natal sempre desperta. O sistema viva-e-deixe-viver não
foi obra de nenhum estrategista, era o mais natural no comportamento humano.
Quantos "memes" natalinos recebemos
nos últimos dias? Falam de paz, amor, amizade, cooperação, paz, bondade,
caridade, ou seja, do altruísmo recíproco dos seres humanos. O Natal é um rito
que consagra esses sentimentos. Os neodarwinistas, que estudam a origem e
reprodução da espécie, classificaram como "meme", que provém da
palavra grega "mimeme", a capacidade de o ser humano replicar e
transmitir sua cultura. Hoje, os "memes" de Natal reproduzem o caldo
de cultura da cooperação humana. Nas disputas civis, como as que acabamos de
ter nas eleições, existe grande espaço para a cooperação. Aquilo que se parece
como uma disputa de soma zero, com um pouco de boa vontade, pode ser
transformado num jogo de soma não-zero que beneficia ambos os lados.
Por exemplo, um bom casamento é um jogo de
soma não-zero, no qual os parceiros cooperam intensamente; porém, quando isso
deixa de ocorrer, os casais se separam. Mesmo quando há o rompimento, existe
uma ampla zona de cooperação e a possibilidade de que não haja um jogo de soma
zero. O bem-estar dos filhos, por exemplo, é um bom motivo para isso. O custo
de uma disputa judicial, na qual cada um tenha que recorrer a um advogado
diferente, também. São muitos os exemplos de cooperação num ambiente de disputa
e competição, como o da sociedade em que vivemos. Certos ritos consagrados,
como o Natal, servem para nos lembrar como isso é importante.
O recente processo eleitoral nos mostrou
uma sociedade muito polarizada, tanto do ponto de vista ideológico quanto em
relação aos interesses mais objetivos e imediatos. Entretanto, já houve uma
mudança de ambiente da água para o vinho — nada mais bíblico. As pessoas estão
mais alegres, mais esperançosas, mais preocupadas com o outro. O presidente
Jair Bolsonaro continua inconformado com o resultado das urnas e não vai à posse
do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, refugando o rito democrático de
passagem da faixa presidencial. A elite do país e a classe média que o
apoiaram, em sua maioria, porém, reconhecem o resultado do pleito e não têm
interesse num país conflagrado permanentemente, num jogo de soma zero, na base
do "quanto pior, melhor", no qual todos perdem.
O Hanuká é uma festividade judaica que celebra a vitória da luz sobre a escuridão e a luta dos judeus contra os seus opressores, durante oito dias. O mês de Kislev, no calendário judaico, corresponde a dezembro na calendário gregoriano. Do ponto de vista filosófico, celebrar o Hanuká significa celebrar a vitória da luz sobre a escuridão, a vitória da pureza sobre a degeneração e da espiritualidade sobre o materialismo. As velas acesas no parapeito da janela fundam uma zona de passagem, entre o familiar e o fora, uma zona de troca entre o diferente e o privado. A palavra iídiche Hanuká nos remete a fundar, renovar, ensinar, reinventar o novo, apesar dos desejos de persistir no mesmo e no sempre.
Um comentário:
Adorei.
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