Ipo News
O cientista político Carlos Melo, professor
Sênior Fellow do Insper, considera que o modelo do "Lirismo", numa
referência criada para o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, se resume
ao fisiologismo agregador: uma "Oligarquia de Coalizão" ou a oligarquia
das coalizões. Seu novo artigo foi publicado esta semana, no Headline Ideias:
Em inércia, o movimento tende ao infinito. Um corpo interrompe ou altera sua
rota somente se alguma força atuar sobre ele. Física básica. Em política, sem
obstáculos, forças ou aparas, o movimento de indivíduos e ou grupos se volta
aos próprios interesses. Se nada o detiver, seguirá retilíneo, uniforme e
indiferente ao interesse geral. Farinha pouca, sem pressão, não sobrará raspa
de pirão.
A política se traduz pela multiplicidade de atores e o conflito entre seus
reais interesses. A filosofia elaborou o "sistema de freios e
contrapesos", pensado para impedir transtornos de movimentos, mais que
autônomos, deletérios. "Como o gás, o poder tem a forma daquilo que o
contém". Sem limites, se espalha. Dependendo das condições atmosféricas,
se dissipará jamais.
Contestação e oposição impedem a tirania. Não há democracia sem elas. Tampouco
há democracia sem responsividade (Robert Dahl). A ausência de oposição é a mãe
das oligarquias.
Centrão, de refúgio à redenção do baixo
clero
Há uma década, o Centrão era pouco mais que
um refúgio de políticos menores. Relevante, por seus membros se agruparem em
busca de importância, recursos e proteção. Posicionando-se no Congresso de
forma pivotal, constituíram a minoria decisiva: pendesse para o lado que
preferisse, daria a vitória ao governo ou à oposição - invariavelmente, ao
governo. Mas, não era o centro gravitacional do sistema.
Eram movimentos estratégicos e, ainda assim, tímidos. Guardavam certo pudor em
público. Os políticos do Centrão viviam, sobretudo, nos rincões, de menor fiscalização
e controle social. Para além de suas lideranças mais ousadas, não se expunham
aos holofotes da mídia, nem ao peso dos julgamentos da opinião pública. Na
catedral do Congresso Nacional, era chamado "baixo clero".
Figuras de expressão paroquial, movidas pelo mais tosco fisiologismo, faziam a
política miúda dos favores, do clientelismo; de esquemas quase amadores.
Vereadores federais, quando muito. Constrangido pela imprensa e limitado por
certa moral ainda vigente, "o baixo clero" tinha arranque, mas não
ganhava inércia. Autonomia de baixa quilometragem, pois seu combustível era
dosado pelo Executivo e pelo conflito entre partidos. À sombra do debate
nacional, fartava-se de sobras e de pequenas barganhas. Não muito mais que
isso.
Distinguia-se do "alto clero", sempre na esfera das grandes questões
nacionais. Era a elite formuladora e formadora de opinião, dentro e fora do
Legislativo. Vinhos doutra pipa, parlamentares de outra expressão: Ulysses
Guimarães, Nelson Jobim, Pedro Simon, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas,
José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu, José Genoíno; Petrônio
Portela, Marco Maciel, Roberto Campos, Delfim Netto... Eram vários, às dezenas.
A grande barganha - termo pejorativo para o senso comum --, natural da negociação
política, dava-se no campo do debate de interesses de projetos contraditórios.
Evidentemente, um pouco de graxa fisiológica lubrificava engrenagens, mas a
grande política, o grande conflito e a articulação de atores eram o oxigênio do
"alto clero". A disputa corria pelo jogo da política. Em comparação
ao atual, era outro esporte.
A oposição pouco transigia, embora houvesse, sim, casos de cooptação. Havia
disposição firme em transformar o país. No embalo dos anos 1950 - em especial
1958, ano em Brasil do futuro foi potencializado -, acreditava-se no futuro. O
futuro valia embates, riscos, cabos-de-guerra, escaramuças. Nada funcionava por
inércia.
Muito disso se perdeu. Forças opostas se compuseram ou simplesmente perderam
relevância. O maior equívoco, talvez, tenha sido a infeliz percepção - de um
pragmatismo de curtíssimo prazo - de que mais compensava "comprar"
parlamentares do que os persuadir. O Mensalão é símbolo, mas não seu marco
fundador: esse mercado existia antes dele. Dá-lhe centralidade comprometeu o
futuro. A voracidade fisiológica ganhou inércia e deu luz ao hiperfisiologismo.
Reminiscência de quem vai ficando velho? Não faz tanto tempo assim. Tudo se
danou em menos de uma geração.
Eduardo Cunha: marco emancipatório
A liberdade de movimentos de Eduardo Cunha, ainda antes de assumir a
presidência da Câmara dos Deputados, sinaliza o início da emancipação do
espírito corporativo e a dificuldade de contê-lo. Ao relatar Projetos de Emenda
Constitucional ou Medidas Provisórias, o então deputado impunham a lógica de
seus interesses. Erro brutal dos governos Lula e Dilma não agirem para sua
contenção.
Eduardo Cunha era profissional dos negócios políticos: trabalhador, inteligente
e sagaz, capaz e sem limites. Capaz de tudo. Com um poder crescente nas mãos,
primeiro como líder do PMDB, não encontrou força que contivesse sua expansão.
Reuniu recursos, cooptou colegas e fragmentou (ainda mais) os partidos. No
espírito franciscano do "é dando que se recebe", levou ao limite o
que, à época, foi chamado de "peemedebismo".
Para além do "peemedebismo", Cunha criou uma força política sua. Num
"cunhadismo" revisitado, sua tribo trabalhava para encher-lhe as naus
com o pau-brasil do poder. Dividido no apoio parasitário à Dilma Rousseff, o
Centrão foi agregado aos poucos. Na mesma lógica franciscana, ajudou a eleger
centenas de deputados. E por centenas de deputados foi, franciscanamente
elevado, depois, à presidência da Câmara.
Como se sabe, morreu abraçado com sua ousadia. Mas, a obra vive, seu espírito ganhou
o éter. No "peemedebismo avançado" que desenvolveu, educou
discípulos.
Rodrigo Maia, à testa da mesa diretora da Casa, após a debacle de Cunha, bem
tentou recuperar os bons modos do parlamento. Resgatar compostura mínima.
Reconheça-se hoje, tratava-se de uma figura em extinção: investisse na desgraça
de Michel Temer, seria um presidente "designated survivor". Mas,
demonstrou princípios: sua fé liberal o amarrou ao mastro da mesa da Câmara,
contra os cantos de sereia. Talvez fosse a última espécie do "alto
clero".
O latifúndio que abriga nossa alma
Maia resistiu, mas foi atropelado pelos discípulos de Cunha, cuja maior
expressão chama-se, obviamente, Arthur Lira. No silêncio de uma observação
matreira, na rudeza de um espírito agreste, Lira superou o mestre.
Sua ascensão ao poder central do Parlamento fez o Centrão "cair pra
dentro", integralmente. Venceu quedas-de-braço, uma a uma: primeiro
Rodrigo Maia, depois Baleia Rossi - último e frágil espasmo
"peemedebismo". Mais tarde, Jair Bolsonaro.
Quase todo o parlamento acorreu a Lira - inclusive, setores do PT. A Câmara
assimilou e foi assimilada por um novo modelo: o Centrão é hoje o centro
gravitacional e toda a lógica do sistema. Lira é apenas um nome símbolo. O
latifúndio que abriga na nossa alma, como diria Oliveira Vianna, libertou-se da
prisão de ferro dos constrangimentos. Ganhou movimento retilíneo uniforme e
vive a liberdade da inércia.
Que nome poderia ser atribuído a essa fase pós "peemedebização"?
"Centrismo" seria inexato, pois não se trata de um "centro
político clássico". Pouco adequado por ambíguo, subestimaria o papel, a
sagacidade e a importância de sua principal liderança: Arthur Lira.
Mais preciso seria chamá-lo, quem sabe?, de "Lirismo". Nova modulação
do poder e novo método de formação de maioria. Sem o ônus da gestão de um
ministério, as emendas do orçamento são adrenalina na veia.
O "Lirismo" não se trata de "Parlamentarismo" ou de
"Semipresidencialismo" à moda dos europeus. Longe disso, o modelo se
resume ao fisiologismo agregador. Uma "Oligarquia de Coalizão" - ou a
"coalizão de oligarquias" - cujo movimento é inercial, sem freios.
Não há presidencialismo. Nem mesmo um líder de massas, como Lula, parece capaz
de obstruí-la.
Chico Buarque e Ruy Guerra sabiam das coisas: "todos nós herdamos do
sangue lusitano uma boa dose de lirismo, além da sífilis, é claro".
Criminalização da política?
De anos para cá, qualquer negociação de interesses, elevados ou vis, para o bem
e para o mal, recebe a tarja de "política". Por proselitismo pueril,
a política paga patos e pecados. Mas, nem tudo que tem má fama é política. No
pôquer entre Executivo e Legislativo, pequenos interesses inicialmente
periféricos deslocaram-se para o centro da cena e dão as cartas. Tornaram-se a
essência do processo.
O tal arcabouço fiscal, por exemplo, não é aprovado por exigência de higidez
nas contas públicas, premência do desenvolvimento, bem maior ou o que o valha.
Mas, como contingência de um modelo voltado para fins próprios: interessa ao
Congresso aprová-lo porque interessa-lhe que o governo libere verbas. Grandes
temas findam acessórios e perfunctórios: tudo é "baixo clero".
Aliás, "baixo clero" é um termo em desuso. Ninguém é o oposto daquilo
que não há ou deixou de ter nome. O "alto clero" dissipou-se sem
lembrança, sem saudade, sem a compaixão de uma sociedade apática, desobstruente
dos caminhos por onde a inércia faz longa a estrada. Deputados e senadores
paroquianos rolam interesses de aldeia como pedras que descem montanhas, sem
obstáculos, construindo avalanches.
Um sistema de vontades particularistas foi naturalizado, em detrimento de temas
e questões gerais. A isso dão o nome de "política". E, diante de
qualquer alerta, crítica ou reparo, seus defensores, irritados, gritam:
"parem de criminalizar a política!"
Não se trata disso: não vai aqui simpatia tardia ao "lavajatismo"
predatório da última década. Nem de mirada moralista sobre o sistema. É sabido
que a política nem sempre é feita de princípios ou valores elevados. Sujar as
mãos pode ser necessário. Assistam "Lincoln" (2012), com Daniel
Day-Lewis. A história ensina que a política tem sua própria moral.
O fato é que o pragmatismo míope produziu sérias disfuncionalidades. Ao se
considerar custos de transação, prejuízos públicos e o mal-estar instalado,
encara-se um sistema de profunda ineficiência. Sistema que travou. E, se pode
impedir que Executivos troquem pés pelas mãos e façam bobagens - seja com
Bolsonaro ou Lula - também há de se admitir que, por disfuncional, não resolve
problemas, repara defeitos ou traz investimentos.
No lirismo da inércia, vê-se ao longe uma carroça velha que segue rangendo suas
rodas numa melodia triste. Deve doer a desolação de nunca encontrar fim a esse
canto e a esse movimento. Na inércia do "lirismo" modelar de sistema
tão disfuncional, não há freios, nem contrapesos. Não há força que atue. Sem
obstáculos, o país desce a ladeira da montanha que acabara de escalar movido
pela inércia de interesses que não são seus.
2 comentários:
Excelente artigo
Pensei que o artigo articulasse sobre o lirismo literário,rs.
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