Carta Capital
A construção social da mentira como
alavanca de comando unifica os dois personagens de egos transtornados
O historiador Mimmo Franzinelli, conhecido
por seus trabalhos sobre o fascismo, escreveu o livro Mussolini Racconta
Mussolini, uma antologia de textos autobiográficos do Duce. Nas linhas e
entrelinhas são expostas as deficiências de Mussolini como
chefe de Estado e ressaltados os lados sombrios de sua personalidade. Diz
Franzinelli que o Duce nunca foi “um grande estadista”, capaz de projetos para
o desenvolvimento do país.
A antologia nos dá uma imagem dos humores,
exaltações, surtos psicóticos, volúpia e paixões políticas e culturais do
Chefe. “Nada a ver com um projeto de nação, mas impulsos irracionais oriundos
de um ego sem limites, de uma convicção e de uma autoconvicção da própria ‘vontade
de poder’ que não conhecem limites.”
O historiador fala de personalidades limítrofes – semelhantes à de Hitler – e de um regime esquizofrênico, submetido aos altos e baixos dos “instintos” pelos quais Mussolini se julgava dotado de uma faculdade profética, como ele chamava suas cognições e iluminuras.
Mussolini, que fala ou escreve sobre si
mesmo, tal como seu símile Bolsonaro implementa
falsificações contínuas da realidade. É a construção social da mentira como
alavanca de comando. Muda e modifica suas posições, sem nunca fazer escolhas
clarividentes ou que atendam ao interesse público. Ele move-se de acordo com
humores e conveniências de seu ego transtornado.
Os comentários que fez à sua amante, Clara
Petacci, sobre as leis antijudaicas de 1938, foram
significativos. Demonstravam irritação com a solidariedade de seus
concidadãos com os perseguidos. “Esses judeus imundos, você tem que destruí-los
todos…”
No livro Delatori, Franzinelli sublinha a
responsabilidade do Duce na estruturação de um sistema que perseguia e
monitorava o cidadão até mesmo na esfera privada. Dezenas de milhares de
pessoas adaptaram-se a essa prática, cuja disseminação reflete o contexto
sociopolítico.
Nos tempos de Mussolini, “a delação foi uma
guerra travada em terra de ninguém, onde público e privado são confrontados
numa dimensão sociopolítica de transformação das mentalidades. A experiência de
pessoas comuns revela – na análise do impressionante material acumulado nos
arquivos policiais – uma carga de perversidade socializada.
Interferências indiscretas minavam a
confidencialidade da vida privada ao mobilizar denúncias, usadas para benefício
pessoal. Isso resultou em insegurança e medo na opinião pública. O conhecido
casual – até mesmo seu amigo – poderia entregá-lo à polícia”.
Mussolini estava convencido de que suas
considerações negativas mudariam a realidade. Ele pensou que poderia alterar o
curso da guerra com seus discursos. Os aduladores que o circundavam
corroboravam suas crenças irrealistas. Em seus delírios, Mussolini começou
a desenhar os uniformes das mais altas patentes militares. “Como se um fato
estético pudesse mudar o curso fracassado da Itália no conflito mundial.”
Decidida por um placar incontestável
no TSE,
a inelegibilidade de Bolsonaro foi tratada por muitos otimistas como presságio
de desarticulação do bolsonarismo. Devo registrar minhas dúvidas a respeito de
tais convicções.
As visões personalistas padecem de um vício
que ressalta as características do indivíduo e esconde as determinações sociais
de sua personalidade. Desconfio que o bolsonarismo engendrou Bolsonaro e não o revés.
Peço licença para recordar o que escrevi
nos idos de 2018, em plena campanha eleitoral. Dizia, então, que a ascensão de
Bolsonaro recebeu os favores do desencanto, do ressentimento e do ódio. O
desencanto transmutou-se em ressentimento e o ressentimento decantou suas
moléculas no ódio indiscriminado, “contra tudo isso aí”.
Nas precipitações químicas do desencanto
para o ressentimento e do ressentimento para o ódio criou-se a cadeia de
reações entre a mentira e a crença: o kit gay e outras tantas ridicularias
posaram sem resistência nas consciências trôpegas e ansiosas dos brasileiros
desamparados e desinformados. O truque consistiu em proclamar mentiras em nome
dos bons costumes e dos valores familiares. Esta é uma peculiaridade
interessante da comunicação na sociedade de massa: a mentira, a falsificação e
o engano deliberado foram incluídos no rol dos bons costumes e das virtudes
familiares.
Quem jogou bola na várzea de São Paulo não
precisa estudar Durkheim, Max Weber, Hannah Arendt ou Wilhelm Reich para
identificar as gentes que sustentam as tropelias e ilegalidades de Bolsonaro et
caterva. Escrevo gentes para significar um modo de ser, uma forma de
sociabilidade definida a partir de uma rede de relações que enformam as
subjetividades, suas palavras, seus gestos e sestros.
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
5 comentários:
Melhor deixar Beluzzo no canto dele, lá no Palmeiras, que seja.
Confiscador de poupança, não se pode confiar.
Achei uma reflexão potente. O autor fulanizou em Bolsonaro ; realmente a reflexão cabe como uma luva para Bolsonaro, mas cabe muito bem para outros personalistas também!
Muito bom o artigo.
Cínico.
MAM
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