Valor Econômico
Pix revolucionou o sistema financeiro apesar
de governos e do Congresso
Organizando gavetas e armários neste
feriadão, encontrei uma pasta com cópias impressas de meus extratos bancários
de 20 anos atrás, quando iniciava minha vida profissional e familiar. Mais do
que registros financeiros de uma vida que já parece distante na memória - sem
filhos, morando em outra cidade e num trabalho completamente diferente do atual
-, a sucessão de linhas de créditos e débitos são atestados de uma revolução
silenciosa ocorrida na economia brasileira.
Em setembro de 2003, com 14 saques e 7 cheques compensados, as operações mais frequentes na minha conta bancária representavam 28% do valor de todas as minhas despesas financeiras.
Vinte anos depois, abro o aplicativo do meu
banco no celular e constato que realizei apenas quatro saques bancários neste
ano e já não consigo lembrar quando preenchi uma folha de cheque pela última
vez.
No mês passado, embora a fatura do cartão
de crédito (51,6%) e os boletos bancários (26,1%) ainda sejam responsáveis pela
maior parte dos meus gastos em termos de valor, 22,2% de todos os meus
pagamentos foram realizados por pix.
Pela rapidez da transação e a ausência de
custos, a transferência instantânea entre contas se tornou a forma preferencial
de recebimento de todo o tipo de prestador de serviços com quem eu e minha
família nos relacionamos, de bombeiros hidráulicos a psicólogos, passando por
professores particulares de inglês e matemática e salões de beleza. De acordo
com um relatório publicado há alguns dias pelo Banco Central, 133 milhões de
pessoas e 11,9 milhões de empresas utilizavam o pix em dezembro de 2022.
Somente naquele mês foram realizadas 2,9 bilhões de transferências que
movimentaram R$ 1,2 trilhão. O valor médio das transações entre pessoas físicas
foi de R$ 257,00, embora 93% de todas as operações ficassem abaixo do valor de
uma nota do lobo-guará.
Se tomarmos apenas o varejo brasileiro, o
pix já é a opção preferencial dos consumidores, perfazendo 33% de todas as
transações realizadas no quarto trimestre de 2022. Comparando-se com a
configuração desse mercado desde o início da sua operação, no final de 2020, o
sistema de pagamentos instantâneo criado pelo Banco Central ocupou espaço dos
boletos e convênios de cobrança (com redução de 33% para 17% das operações),
dos cartões de débito (de 26% para 17%) e de crédito (queda de 20% para 18%),
das TEDs e DOCs (de 9% para 2%) e dos saques (de 9% para 2%).
O fato mais notável nessa revolução
provocada pelo pix é que ela ocorreu de forma praticamente independente do
governo de plantão ou das negociações no Congresso. Ainda que na campanha
eleitoral do ano passado o ex-presidente Jair Bolsonaro tenha tentado se
apropriar do sucesso do pix como se fosse uma marca de sua gestão, a equipe
técnica do Banco Central começou a discutir o tema internamente em 2013, como
uma evolução do Sistema de Pagamentos Brasileiro, que havia criado a TED em
2002.
Atento à experiência internacional - a
Coreia havia implementado o primeiro sistema instantâneo em 2001 -, o Bacen
realizou um workshop para conhecer as melhores práticas e os requisitos
técnicos para a instalação de um sistema similar no Brasil em 2016. A partir
daí, a diretoria do órgão montou um grupo de trabalho para tratar do assunto em
2018, contando com a participação de integrantes de todo o ecossistema do
setor.
No ano seguinte foi criado o Fórum Pix para
o desenvolvimento das plataformas tecnológicas no ambiente do próprio Banco
Central, seguido de um intenso trabalho de regulamentação do sistema de
pagamentos e de comunicação junto à sociedade, até o início da operação em
16/11/2020.
A estratégia do pix é um caso emblemático
de uma vitoriosa política de Estado, levada adiante mesmo em meio às
turbulentas mudanças de governo e de orientação econômica ocorridas nos últimos
dez anos no Brasil.
O sucesso do pix também é um exemplo do que
o tão criticado funcionalismo público brasileiro tem de melhor. Dificilmente um
sistema tão complexo teria sido concebido e implementado se não houvesse um
corpo técnico de servidores públicos muito bem preparado e capacitado, em um
órgão protegido de ingerências políticas como é o Banco Central.
O serviço público brasileiro tem uma série
de distorções e funciona mal em muitas situações. Há carreiras em excesso,
penduricalhos salariais fazem com que algumas categorias sejam remuneradas de
forma desconectada da realidade brasileira e não existe política de avaliação
de desempenho.
Infelizmente, o projeto de reforma
administrativa em discussão no Congresso não ataca esses problemas. Pelo
contrário: a PEC nº 32/2020 fragiliza o instituto do concurso público, estimula
a terceirização de atividades em áreas estratégicas e aumenta a possibilidade
de contratos temporários e indicações políticas no preenchimento de cargos
relevantes.
Se a classe política brasileira realmente
estiver interessada em melhorar o funcionamento do Estado, antes de levar adiante
mudanças precipitadas como a reforma administrativa defendida por Arthur Lira,
é bom começar por identificar os casos bem-sucedidos. E a experiência do Banco
Central com o pix certamente está entre eles.
*Bruno Carazza é professor
associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
3 comentários:
Excelente!
Magnífico!
Perfeito!
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